Ética e Luta pelo Poder, por Ricardo Santos

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 Ricardo Santos *

 

            A oposição neoliberal aliada a dissidentes do governo Lula, se lança em desesperada batalha eleitoral, na ânsia de retomar o poder. Defendem aquilo que menos entendem e mais violaram enquanto Governo: a Ética. O combate adquire características singulares, embora não tão novas na nossa história. O campo principal de batalha foi arquitetado após meses de campanha sem resultados de seu insosso e fraco candidato – Geraldo Alckmin. E ao considerarem “a questão ética como único ponto vulnerável de Lula”, conforme entrevista do Diretor do IBOPE a um órgão televisivo. Fernando Henrique Cardoso, outros tucanos e pefelistas procuram embrulhar Lula com vestimenta de “ladrão”. Procuram chegar com esta imagem tão perto da figura presidencial, que o fazem com a mesma irresponsável e desavergonhada ambição que o retorno ao poder lhes desperta. Será esquecem dos oito anos de triste trajetória na memória dos brasileiros? Da “ética das privatizações”, “da ética do processo de reeleição de FHC” e, revelado agora, da origem “ética do escândalo dos sanguessugas”, entre outros? Nesta trajetória há muito por esclarecer, discutir, analisar e julgar: jurídica, ética e historicamente.

É preciso lançar alguma luz sobre esta discussão, tanto no aspecto teórico quanto na sua práxis. Tentar abrir o debate desta questão sobre outro ângulo, inclusive sobre aspectos normativos atuais e futuros. Avaliar as conseqüências para o povo, o país e a democracia. Cobrar responsabilidades deste ato de desespero das elites. Além da tentativa do golpe pelo poder, está em questão o golpe na própria ética – uma inversão de valores da sociedade capitalista – aos quais certos tipos de políticos muito tem se afeiçoado. Os atuais “defensores da ética” sofismam para provar suas teses e esconder seus verdadeiros propósitos. Apoiados numa visão ética desvinculada do social, ignorando o desenvolvimento da história completa do processo político de corrupção no país, suas origens e antecedentes, mentem descaradamente, subtraindo informações sobre seus próprios erros e com enorme respaldo da grande mídia – esta também merecendo uma apreciação ética aprofundada, tanto pela sociedade quanto por jornalistas responsáveis, comprometidos com a fidelidade da informação e não com sua manipulação grosseira e golpista.

            A oposição delimita um claro campo de combate ao Governo Lula – de curto, médio e longo prazo. No combate inicial tratou de impedir sua vitória em primeiro turno e continuam a tentar manobras jurídicas, que colocariam a eleição “sub-judice”. Na visão oposicionista, Lula, se eleito, não tomará posse e se tomar posse, não governará. O ponto crítico central é a questão da ética no poder. Portanto vamos analisá-lo, pois ao povo, às correntes progressistas e ao desenvolvimento ético-político dos cidadãos, só interessa a verdade.

 Lembremos Descartes ¹, sobre falsos filósofos: “A obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem é a causa de poderem falar de todas as coisas como se as soubessem e de sustentarem o que dizem contra os mais capazes e os mais sutis, sem que se tenha meios de os convencer. Por isso, tornam-se comparáveis a um cego que, para lutar sem desvantagens contra alguém que não é cego, levasse o adversário para o fundo de um subterrâneo muito escuro”. Ao povo trabalhador, na sua ética, enquanto ciência da moral e não enquanto moralismo eleitoral vulgar e golpista interessa esclarecer a fundo todas as denúncias. Interessa evitar subterrâneos, onde falsos cegos – inclusive da mídia – tentam travar a discussão. O momento pede a luz e clareza dos fatos, bem como, o debate com vozes lúcidas das consciências éticas da nação. Esta a ética da classe trabalhadora, a ética que serve ao povo e que, talvez, esteja começando a ser construída no Brasil! Os que mais tem a temer e a perder com a nova ética são justamente os que a estão usando para fins golpistas e eleitorais.

            A origem da Ética é pelo menos tão antiga quanto a filosofia e religiões, existindo desde as comunidades primitivas, passando pelas sociedades escravistas 2, feudais, capitalistas e, também nas socialistas. Neste processo da história universal houve um acúmulo de experiência moral, inclusive dos valores éticos universais, bem como, mudanças de qualidade nos diversos tipos de éticas desenvolvidos em cada contexto histórico e tipo de sociedade 2, 3.

Ocorre que o homem é um ser social numa sociedade de valores em movimento.  A Ética em si, ou a Ética abstrata, fora da sociedade de classes em movimento existe apenas como elemento de domínio, subserviência, alienação ou fuga. Esta a questão que se coloca do ponto de vista da filosofia da ética. De qual ponto de vista ético3 estamos falando? Do ponto de vista da ética das elites dominantes, com vasta “folha corrida” no domínio da “ética”? Ou será melhor dizer folha corrida da ética do domínio? Ou ao contrário, falamos do ponto de vista da classe trabalhadora? Da ética do operário, do povo simples, humilde e explorado, que nos ilumina com uma nova visão ética de poder no Brasil, intrinsecamente ligada ao desenvolvimento do país, à sua transformação e soberania? Luz nascida das esperanças despertadas neste governo, pela ética de não esquecer um povo tantas vezes esquecido por estas mesmas elites! Mas será que existem as diferenças éticas supracitadas?

 As classes dominantes sempre tentaram impor seus valores éticos e considerá-los como universais, negando a ética dos explorados e dissociando o discurso da prática, no intuito de manter seu poder e privilégios de classe – digamos assim – seu “bolsa-capital”, infinitamente superior ao bolsa-família. Portanto, a discussão ética tem que ser contextualizada na sociedade, na realidade concreta atual. Deve ser vista do ponto de vista das classes sociais, dos seus respectivos tipos de ética e dos valores universais, comuns e resultantes do acúmulo da experiência social e da evolução do pensamento da humanidade. O pensamento progressista “defende a tese que a moral humana universal não existe independente e isoladamente dos sistemas de classe da moral” 3. A ética marxista contempla os elementos humanos universais na moral dentro da realidade social concreta.

A filosofia do pragmatismo – enquanto “os fins justificando os meios” – tem sido levantada historicamente e na atualidade, no ataque às esquerdas 4, em particular aos marxistas. A primeira questão a esclarecer é que o pragmatismo, enquanto filosofia de ação, que recomenda proveitos quaisquer que sejam os princípios, não é e nunca foi uma filosofia marxista. A filosofia do pragmatismo desenvolveu-se nos Estados Unidos da América do Norte com Charles Peirce (1839 -1914), William James (1842 -1910) 5, 6, John Dewey (1859 – 1952) e seguidores.

A concepção marxista, não admite que a idéia é verdadeira porque é útil, mas justamente o contrário: quando verdadeira e objetivamente fundada, a idéia é útil e aplicável. E somente nestas condições, pois, segundo os marxistas, a prática é o critério da verdade. Retornando a Descartes 1, no seu Discurso sobre o Método, muito apreciado nesta questão por Marx, na opinião de Politzer 7, “a prática virá punir a concepção falsa, o método errôneo”. Para os marxistas, não é porque uma idéia fracassa que se torna falsa, mas, ao contrário, a idéia fracassa por ser objetivamente falsa. O sacrifício da verdade não é uma prática progressista e nem marxista. Hoje em dia, muitas correntes diferentes de opinião são denominadas de esquerda e/ou marxistas. É preciso cuidado para não generalizar. A teoria marxista só admite uma concepção verdadeira sobre o pragmatismo.

Georges Politzer (1903-1942) 7, filósofo e marxista francês, no seu curso de Filosofia Marxista dado na Universidade dos Trabalhadores da França e na Escola do PCF, afirmou 8: “Em matéria científica, o pragmatismo recomenda o abandono da teoria, do pensamento, da previsão. Preconiza” experiências para ver “, ao acaso, quaisquer que elas sejam. Se dão certo, tanto melhor; se não, tanto pior. O pragmatismo autoriza assim” experiências “criminosas. Esta” teoria abjeta constituirá toda a bagagem ideológica dos médicos nazistas e de seus êmulos japoneses, que faziam experimentos com prisioneiros; ela é, atualmente, a dos americanos, em matéria de guerra bacteriológica ““. Georges Politzer, membro do PCF e da resistência francesa, foi preso e posteriormente executado pelos nazistas em 23 de março de 1942. Sua esposa, também comunista e da resistência francesa, foi transferida para Auschwitz 6, onde morreu em 1943. Assim, esperem-se muitos sacrifícios dos marxistas, menos o sacrifício da verdade e de seus ideais, intimamente relacionados, indissociados; saberemos encontrar a verdade tendo a prática como critério, reafirmando-a enquanto verdade científica, nas nossas vitórias, mas, também, nos nossos eventuais fracassos, aparentes e transitórios.

            Um bom exemplo sobre o pragmatismo tal qual descrito, vem do seu próprio país de origem, os EUA, e também envolveu e envolve uma realidade eleitoral: a mudança da legislação americana ferindo os preceitos legais consagrados no Código de Genebra, numa aparente intenção de luta contra o terror. A discussão dividiu a sociedade americana e o próprio poder. Como sabemos pela própria mídia, há mais tortura no Iraque de hoje, sob a administração Bush, do que havia na época de Hussein. Os grupos terroristas em potencial aumentaram após a guerra do Iraque.  Há depoimentos de inúmeros políticos americanos desmascarando as motivações eleitorais de Bush ao declarar guerra ao Iraque, bem como, pronunciamentos de militares e humanistas contra sua continuidade e questionando sua eficácia. O meio – representado pela guerra – justificou os fins reais e não os aparentes – para desencadeá-la (fins eleitorais, justificativas para o público interno nos lamentáveis episódios do 11/set., geopolíticos, petróleo, etc.), não importando o lado humano, inclusive do povo americano, vitimado por dois pólos do terror em luta bestial. Enquanto isto a recuperação de Los Angeles após o furacão Katrina e que atingiu principalmente o povo pobre americano, carece das verbas enviadas para a guerra “em defesa da liberdade e da democracia”. A quem a história deveria julgar em tribunais internacionais? A quem a humanidade condenará no futuro?

Que lições éticas se podem tirar da visão do pragmatismo eleitoral americano? Talvez a mesma lição da visão eleitoral que as classes dominantes no Brasil tem propiciado nestas eleições, ou seja, seus fins eleitorais, sua ânsia de retorno ao governo justificam o jogo sujo em curso. Tentam inverter o “discurso ético”, considerando que não interessa “discutir o passado, pois este é história – mas interessa discutir este governo”, o governo Lula, nas palavras de FHC. Sua volta ao poder, na figura de Geraldo Alckmin – representa uma estratégia também indissociável dos erros e julgamentos éticos que pretendem esconder, que pretendem impedir que aflorem à discussão. Temem a progressão das investigações da Polícia Federal. Assim, interessa ao povo trabalhador o esclarecimento e punição de qualquer erro ético – o que efetivamente tem sido levado a termo neste governo como nunca foi anteriormente, havendo muito por fazer, inclusive em relação à períodos anteriores ao governo Lula.

Retomando a discussão do pragmatismo. Quer posição mais pragmática que a adotada na disputa ao Senado pelo Rio de Janeiro? Com o fim de se eleger e permanecendo todo o tempo atrás da candidata líder Jandira Feghali, o candidato “vencedor” aliou-se à igreja, deturpando a discussão sobre o aborto e deixando aflorar, da triste memória dos subterrâneos da ditadura militar, seus mais sinceros sentimentos contra a esquerda. Qual a ética destes senhores que usam de quaisquer meios, de quaisquer artifícios, sem qualquer compromisso com a verdade, para obter seus fins? Na discussão ética, dissociam a teoria (o que defendem na aparência) da prática (de suas ações concretas). Parcela substancial do povo muitas vezes generaliza: “o que os políticos falam não é o que os políticos fazem”, gerando o ceticismo e o descrédito. A busca por novos valores políticos segue muitas vezes um caminho sem bússola ou com a “bússola equivocada”, como na eleição para o Senado no Rio, e que precisa ser esclarecido em todos os seus aspectos.

Antes de qualquer coisa é preciso realmente dizer quem é quem. E fugir do caminho de discussão imposto pelas classes dominantes – se afastar do subterrâneo descrito de forma precisa por Descartes; além de inverter a situação, trazendo “os cegos” (ou que fingem cegueira), para a luz, onde se possa travar o bom combate, clareando a análise dos fatos e iluminando o caminho a seguir – esclarecendo o povo trabalhador e a classe média oscilante. Só assim, saindo da ética em abstrato e entrando na ética concreta, que se desenvolve no calor da luta social, inserida no contexto da realidade brasileira, teremos condições de dar a real dimensão desta situação política em evolução. A grande lição ética que o trabalhador e forças progressistas devem dar neste momento é não aceitar a falsa condição de “réu” e passar a verdadeira condição de juiz, como em outros exemplos históricos. São as classes dominantes que engendram o pragmatismo descrito acima, a falta de ética ou a ética do domínio, no intuito de permanecerem dominantes. Sempre foi assim, do escravagismo ao capitalismo, e, só deixará de ser assim, quando o mundo evoluir para outro nível – o Socialismo.

 A decadência social pode envolver mudanças éticas, como as que observamos atualmente nos EUA 9, 10, bem como a evolução social pode desenvolver a ética, o que desejamos para o Brasil. Questões éticas podem tanto acelerar quanto retardar o processo de desenvolvimento social e, pela relevância para o país e seu povo, merecem especial atenção, pois todos desejamos uma arrancada soberana e desenvolvimentista. O momento é de ampla convocação da consciência ética progressista deste país – a fim de tirar a discussão do “poço das falsas aparências” – aí incluídos intelectuais de renome na área social, filósofos, jornalistas, artistas, entidades representativas e outros. É fundamental fortalecer a verdadeira discussão sobre a ética, neste momento político delicado que o país atravessa, com sabedoria, serenidade, democracia e responsabilidade, mas, principalmente, com o compromisso de servir ao povo brasileiro. É necessário travar a luta teórica e fazer o contraponto da mídia comprometida com a classe dominante. Melhor ainda que tenham que ocorrer críticas e autocríticas neste processo. Um novo projeto ético será construído em cima da experiência, da identificação e discussão de erros e acertos, do desmonte da ética dominante até então imposta ao povo trabalhador.

Trazer a discussão ética para a realidade concreta, não é só questão de vitória eleitoral, mas é fundamentalmente, a defesa da ética da classe trabalhadora, fruto que precisa crescer e amadurecer, fruto a ser colhido no processo de transformação social, na construção de uma nova ética de governo e de Estado. Uma ética nascente e de interesse popular. Quem sabe uma nova etapa do futuro governo Lula?

Marx, num comentário publicado pelo New York Daily Tribune em 185311, emite uma opinião interessante que envolve a evolução ética da humanidade:

“Quando uma grande revolução social tiver dominado as conquistas da época burguesa, o mercado mundial e as modernas forças de produção, sujeitando-os ao controle comum dos povos mais adiantados, só então o progresso humano deixará de assemelhar-se àquele horrível ídolo pagão que só bebia néctar no crânio das vítimas que lhe haviam sido imoladas”.

            Certamente há diversos fatores sociais na vida do indivíduo, incluindo principalmente educação, trabalho, família, a vida e a práxis social que influenciam seu aperfeiçoamento ético. A classe trabalhadora interessa o maior desenvolvimento dos valores éticos universais, inseridos na vida social, na sua transformação e desenvolvimento e na luta pelo aprimoramento da justiça social, formando-se e aprimorando-se assim,  cidadãos, no mais amplo aspecto ético e humanista. 

 

Referências :

 

(1)     Descartes, R. (1635). Discourse on the Method of Rightly seeking Truth in the Sciences. Prefácio pelo autor. MIA Arquive, marxism.org.

(2)     Shcheglov, A.V. (1945).  História da Filosofia, Ed. Vitória, Rio de Janeiro; pg. 1-261.

(3)     Titarénko, A. I. (1982). Determinação social e de classe da moral. Em: Fundamentos da Ética Marxista – Leninista, cap. I, Ed Progresso, Moscou; pg. 7 – 45.

(4)     Jaguaribe, H. (2006). Entrevista ao Jornal O Globo, 1 de outubro de 2006, pg.  8.

(5)     James, W. (1904). What is Pragmatism? The Livrary of América. Lecture II, reproduzido em: MIA Arquive, marxism.org.

(6)     Shook, J. R. (2002). Os pioneiros do pragmatismo americano. Ed. DP&A, Rio de Janeiro; pg 1 – 215.

(7)     Politzer, G. (1937). The tri-centenial of the Discourse on Method. Source: Originally in La Correspondance internationale, no. 23, 1937. Em: Ecrits 1- La Philosophie et les Mythes, Ed. Jacques Debouzy, Éditions Sociales, Paris, 1969.

(8)     Politzer, G. (1936). Elementary Principles of Philosophy. Works University, Paris. Em: MIA Arquive, marxism.org.

(9)     Sennett, R. (2004). A Corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Ed. Record, Rio de Janeiro- São Paulo, pg. 1 – 204.

(10) Ehrenreich, B. (2004). Miséria à Americana : Vivendo de subempregos nos Estados Unidos. Ed. Record, Rio – São Paulo; pg. 1 – 250.

(11) Marx, K. (1853). New York Daily Tribune, 8 de agosto de 1853. Em: Bottomore, T. (1988).  Dicionário do pensamento Marxista, Ed Zahar, pg. 142.  

 

 

 

 

* O autor é Professor Adjunto na UERJ; Médico por formação; Mestre em Biofísica-UFRJ e Doutor em Ciências -UNIFESP–EPM. Presidente-Fundador da ASDUERJ (1979).. Primeira versão em 28 de setembro de 2006. Sem