CINEMA: ‘Bacurau’ e a nova onda do cinema brasileiro

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Nos últimos anos assistimos a uma guinada do cinema brasileiro, tanto no número de filmes produzidos, quanto em seu prestígio internacional. Entre os autores que se destacaram está Kleber Mendonça Filho, que se evidenciou tanto pelos debates que seus filmes geraram quanto pelo reconhecimento em festivais importantes. Bacurau , seu último filme, foi dirigido em parceria com o cineasta Juliano Dornelles.

O filme, que chega agora às salas de cinema, recebeu o Prêmio do Júri em Cannes, concorrendo com pesos pesados internacionais como Jim Jarmush, Ken Loach, Terrence Malick, Elia Suleiman, Corneliu Porumboiu, Marco Belocchio, Pedro Almodóvar e os irmãos Dardenne. Não é pouca coisa. De quebra, trouxe o primeiro prêmio para o Brasil na competição principal do Festival desde que Glauber Rocha ganhou melhor diretor por Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro , em 1969. Antes dele, O pagador de promessas , de Anselmo Duarte havia ganhado a Palma de Ouro em 1962. Lançada agora em 290 salas, a obra merece a repercussão que vem causando.

Bacurau se passa em um futuro próximo, em um povoado no interior de Pernambuco. Logo no início do filme descobrimos que o lugar viveu uma disputa recente por água, está isolado e possui um abastecimento precário. Apesar das dificuldades, seus habitantes sobrevivem em uma curiosa harmonia, numa sociedade onde bandidos, professores, putas e comerciantes parecem conservar-se unidos, dentro de uma lógica singular de equilíbrio e respeito. Essa tranquilidade é quebrada quando uma série de assasinatos acontecem próximos ao povoado, ao mesmo tempo em que o lugarejo é literalmente apagado do mapa e perde seus sinais de telefone e comunicação externa. Ilhados, precisam combater seus misteriosos inimigos. Para isso, trazem de volta uma quadrilha de bandidos renegados e iniciam uma guerra contra um grupo de americanos que ali se encontram para fazer “caça esportiva” com pessoas vivas, numa espécie de jogo monitorado, onde cada pessoa morta rende pontos ao assassino. À lógica facínora da classe média americana contrapõem-se então os bandoleiros da catinga e suas energias represadas de anos de lutas e sobrevivência no sertão.

Como alguns críticos já mencionaram, Kleber Mendonça procura neste filme fazer uma alegoria do Brasil contemporâneo. O conceito de alegoria é complexo e foi trabalhado com muito cuidado pelo crítico Ismail Xavier em seu livro seminal Alegorias do subdesenvolvimento . Fazendo uma leitura rasteira do conceito, pensemos aqui alegoria como uma forma de figuração no tempo, que cria uma espécie de metáfora que exprime algo diferente do que enuncia diretamente. Ou seja, é uma coisa que se refere a outra coisa, fora dela mesma. No caso de Bacurau , nos conflitos da pequena cidade figurariam os confrontos deste Brasil confuso e violento em que vivemos.

Podemos pensar também o povo de Bacurau como uma alegoria do povo brasileiro. Onde o que parece calmo pode se mostrar extremamente violento. Há muita vida e movimento por baixo da serenidade aparente de um rio. E essa erupção que emerge em Bacurau é uma possível resposta aos que pretendem pensar o Brasil como uma sociedade cordial, composta por um povo submisso à ordem. A força do filme está justamente em mostrar essa explosão de violência, sem perder no entanto a empatia pela transformadora forma de convivência na diferença que o filme apresenta. Essa sociedade dos que se tornaram nos últimos anos párias (professores, médicos comunitários, travestis, putas, pequenos bandidos, cantadores, consumidores de psicotrópicos, curandeiros, bêbados etc…), um universo de pessoas não brancas e não integradas, forma a comunidade do filme que buscará reagir à violência a que são submetidos.

Obra de cinéfilo, Bacurau carrega referências de outros cineastas desde sua primeira imagem, que remete ao Enigma de outro mundo (1982), de John Carpenter. Este parece ser um dos diretores mais presentes na constelação do filme (e ele aparece também na trilha sonora com “Night”). Mas não é o único: os diretores dialogam com o cinema brasileiro dos anos 60 e sua construção de conflitos no meio rural e no sertão. Cita indiretamente o cineasta Glauber Rocha, com a presença de uma canção de seu parceiro Sérgio Ricardo, responsável pela trilha deDeus e o Diabo na Terra do Sol . E cita Roberto Santos de A hora e a vez de Augusto Matraga , com uma canção do filme composta por Geraldo Vandré. Há também na construção de Bacurau algo do universo violento de Sam Peckinpach e da atmosfera transgressora de Sergio Leone (principalmente na construção dos bandoleiros vividos brilhantemente no filme por Silvero Pereira, Uirá dos Reis e Valmir do Côco).

Aliás, esse é um ponto importante ao refletir sobre Bacurau . Ao evitar ênfase em protagonistas singularizados, emerge no filme uma representação coletiva, sustentada por seu ótimo conjunto de atores: as performances de Sonia Braga, Barbara Colen, Carlos Francisco, Thomas Aquino e Wilson Rabelo entre outros criam uma intensa empatia com o público e nos fazem torcer para que eles resistam ao massacre dos conterrâneos de Trump.

Em outros filmes de Kleber Mendonça, toda uma tradição do pensamento brasileiro era evocada para discutir a questão do patrimonialismo no Brasil e a forma como as relações senhoriais permaneciam no presente, traçando relações entre os antigos donos de terra e a atual especulação imobiliária. Neste novo filme, os diretores evocam a tradição do cangaço e dos bandoleiros do sertão para construir uma resistência dos condenados da terra, que já aparecia timidamente em O som ao redor (2013). Transforma-se então em um faroeste contemporâneo, que contrapõe a uma modernidade selvagem e facínora dos invasores, um sertão nada ingênuo, conectado com o mundo e que ainda ecoa a máxima de Deus e o Diabo : “mais fortes são os poderes do povo”. Ao deparar com esses caçadores sanguinários, traz à tona o velho espírito do cangaço, presente no pequeno museu da cidade retratada.

Se parece uma visão um tanto idealista, não é nada ingênua, remetendo à melhor tradição de resistência popular do Cinema Novo, deixada de lado pela maioria dos filmes brasileiros após a derrota dessa perspectiva diante do Golpe de 1964. Essa visão de mundo nos anos 60, era inspirada em toda uma literatura anticolonialista, em especial na obra de Franz Fanon, de Os condenados da Terra , no qual Glauber inspirou-se diretamente. E é nessa aposta, na união da ralé contra uma elite que os mata, que Bacurau se estrutura em um poderoso discurso político, que junta as pontas do cinema contemporâneo brasileiro com o produzido até 1964, pois, como nos ensinou Glauber Rocha em sua Eztetyka da fome , “o amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação”.

Em cartaz em:

Brasília (DF), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Vitória (ES), Recife (PE), Salvador (BA), Fortaleza (CE), Aracaju (SE), João Pessoa (PB), Maceió (AL), São Luis (MA), Teresina (PI), Poto Alegre (RS), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Goiânia (GO), Campo Grande (MS), Cuiabá (MT), Belém (PA), Manaus (AM), Boa Vista (RR), Macapá (AP), Palmas (TO), Ri o Branco (AC), Porto Velho (RO), Campina Grande (PB), Caruaru (PE), Guarulhos (SP), Campinas (SP) e mais 50 cidades.

Fonte: Artigo de Thiago B. Mendonça, publicado na revista Época.
Thiago é crítico de cinema, diretor e roteirista. É mestrando em meios e processos audiovisuais pelaUniversidade de São Paulo.