Bolsonaro e as quase 100 mil mortes: trapalhadas, omissão e desprezo às vítimas

Desde o início da pandemia, presidente nunca tomou um posicionamento efetivo contra a doença

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Manaus 01 05 2020-Manaus (AM) – Aldenor Basques Félix Gutchicü, vice-cacique da comunidade Wotchimaücü, do povo Tikuna, morreu com suspeita de Covid-19, em sua casa no bairro Cidade de Deus, na zona norte de Manaus. A família aguardou por mais de sete horas para que o corpo do indígena fosse retirado da igreja evangélica, onde ficou acomodado em três mesas de plástico, pelo serviço SOS Funeral, da Prefeitura de Manaus. À meia-noite de ontem os restos mortais do cacique foram levados pelos funcionários para uma câmara frigorífica do cemitério municipal Nossa Senhora Aparecida, no bairro Tarumã, na zona oeste da cidade. No local, Aldenor foi sepultado ontem, às 15h30, em uma vala coletiva, onde são enterradas as pessoas que não podem pagar por um caixão.(Foto:Fernando Crispim/Amazônia Real)

Desde que a pandemia de covid-19 começou, matando centenas de pessoas na China, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já dava sinais de que a negligência seria a tônica de sua conduta quando a doença chegasse no Brasil. No dia 9 de março, ele afirmou a situação estava superdimensionada. 

“Existe o perigo, mas está havendo um superdimensionamento nesta questão. Nós não podemos parar a economia. E eu tenho que dar o exemplo em todos os momentos. E fui, realmente, apertei a mão de muita gente em frente ao Palácio, aqui na Presidência da República, para demonstrar que estou com o povo.” Dois dias depois, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou pandemia.

primeira medida normativa para enfrentar o desafio do coronavírus veio somente depois de dois meses e 11 dias após a descoberta da nova doença pelos médicos na China. Foi no dia 11 de março, quando o Ministério da Saúde publicou a portaria 356, tratando do isolamento de pacientes, exames compulsórios e análises laboratoriais. 

Da “histeria” à “gripezinha”

A postura do presidente também foi verbalizada quando três dias após o Brasil registrar o primeiro óbito, no dia 17 de março, o presidente afirmou que “depois da facada”, não seria uma “gripezinha” que iria derrubá-lo, novamente minimizando o risco da doença. Pouco antes, Bolsonaro disse que “obviamente temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”.

Em 17 de março, Bolsonaro disse que havia uma “histeria” em torno da crise pandêmica e que comemoraria seu aniversário de 65 anos com uma “festinha tradicional”, ofendendo todos os familiares brasileiros que perderam entes queridos para a doença. “Esse vírus trouxe uma certa histeria. Tem alguns governadores, no meu entender, posso até estar errado, que estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia”, declarou.

O mesmo posicionamento ocorreu no dia 22 de março: quando o Brasil registrou 1.546 e 25 óbitos, Bolsonaro afirmou que o número de mortes por covid-19 não ultrapassaria a quantidade de vítimas fatais causada por H1N1, que, segundo ele foram 800. A declaração, em entrevista ao Domingo Espetacular, da TV Record, não especificava o período de análise. 

No dia 8 de abril, duas semanas após a fala do presidente, o Brasil registrou 814 óbitos, ultrapassando o número estipulado por Bolsonaro. Ainda assim, dois dias depois ele afirmou: “tá com medinho de pegar vírus? Tá de brincadeira. O vírus é uma coisa que 60% vai ter ou 70%. Não vai fugir disso”. Até às 18h30 deste sábado (1), foram 2.707.877 milhões de casos e 93.563 mortes, ultrapassando em 116 vezes o estipulado pelo presidente no início da pandemia.

Ainda no começo de abril, um dia após o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defender a importância de medidas de isolamento para combater o coronavírus, em rede nacional, em uma coletiva de imprensa, o presidente fez o contrário: ignorou as recomendações do próprio ministro, bem como da OMS, e visitou diversos comércios em Brasília, na manhã o dia 29 de março. Em vídeos postados em suas redes sociais, é possível ver Bolsonaro cercado de pessoas, causando expressivas aglomerações.

O movimento continuou a ser o mesmo conforme o passar dos dias. Cerca de um mês depois o presidente afirmou: “E daí? Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, em resposta à observação de um jornalista sobre a marca de aproximadamente 5 mil mortes. 

Cloroquina

Durante toda a pandemia, Bolsonaro insistiu e ainda insiste na campanha pelo uso indiscriminado da cloroquina, mesmo sem evidência científica provando eficácia contra a covid-19. Ele chegou a defender o uso da medicação em rede nacional e obrigou o Ministério da Saúde a incluí-la no tratamento de pacientes. Seu esforço para propagandear se deu ainda quando ele contraiu o vírus. Mesmo ao reconhecer que teve febre de 38 graus e dores no corpo, Bolsonaro tentou manter a postura de que a covid-19, por mais que já tenha matado mais de 65 mil brasileiros, não é tão grave assim.

A OMS não recomenda que as substâncias sejam usadas para pacientes infectados pelo coronavírus, a não ser em testes controlados, uma vez que podem ocorrer efeitos colaterais cardíacos e outros como acidente vascular cerebral (AVC).

Em Manaus, um estudo foi foi interrompido após a morte de pacientes que receberam doses altas de cloroquina e a verificação de que a substância – usada para tratar a malária e outra doenças autoimunes – causava arritmia cardíaca em um número elevado de pessoas. Ainda assim, no dia 24 de julho, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, durante entrevista coletiva, mostrou que o governo federal distribuiu 100.500 comprimidos de cloroquina para indígenas. 

Paralelamente, Bolsonaro sancionou com 16 vetos a lei que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, que estabelece medidas para prevenir a disseminação da doença entre povos tradicionais. 

Entre os trechos vetados pelo presidente, estão a obrigação de o governo oferecer acesso à água potável e a distribuição de produtos de higiene e limpeza. Bolsonaro também vetou a elaboração de ações específicas para ampliar os leitos hospitalares, a liberação de verba emergencial para a saúde indígena, projetos de instalação de internet nas aldeias, distribuição de cestas básicas e o acesso facilitado ao auxílio emergencial. 

Troca de ministros

Os dois ministros da Saúde ligados diretamente à área, os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, não resistiram às ordens de Bolsonaro na pasta. Desde o dia 15 de maio, quando Teich pediu demissão, o Brasil não tem um ministro da Saúde. Quem está no cargo é o ministro interino e general Eduardo Pazuello. 

Mandetta foi demitido em 16 de abril, após uma série de embates com o presidente sobre isolamento social. Segundo o mandatário, o então ministro defendeu só o interesse médico em meio à pandemia e “não entendeu a questão do emprego”. Teich não ficou nem um mês no cargo. Ele discordou de Bolsonaro sobre o uso indiscriminado da cloroquina e, sem espaço para trabalhar, pediu demissão em 15 de maio.

Dos mais de R$ 500 bilhões liberados pelo Congresso para os gastos com a pandemia no Brasil, o governo Bolsonaro executou apenas R$ 216 bilhões, que correspondem a menos de 43% do total. A constatação é do Siga Brasil, plataforma do Senado que acompanha o percurso de gastos da União. 

Se mantiver a curva de mortes por covid-19 dos últimos dias, o Brasil chegará a 100 mil mortes entre sexta-feira (7) e sábado (8).

Fonte: Brasil de Fato