Artigo de Ana Magnólia | O canto da sereia das ferramentas de gestão de pessoas

0

Ana Magnólia

O reconhecimento é tratado como responsabilidade individual, excluindo a responsabilidades da empresa. O discurso aponta uma “preocupação” da empresa com a valorização do funcionário ou da dependência e tem como objetivos: 1. fortalecer a autoestima. Que autoestima é essa? qual a definição conceitual de autoestima? Esta autoestima pode ser entendida como resiliência, obediência ou servidão?  2. Reforçar o orgulho de trabalhar no Banco, aumentar o vínculo e o compromisso entre o funcionário e o Banco. Aqui claramente trata-se do comprometimento afetivo com empresa. O trabalho é um lugar de direitos e deveres, com esse tipo de vínculo é possível desenvolver a dependência, a culpa a vergonha e uma gratidão patologia pelo Banco. É um modo de mobilizar um dívida do funcionário com o banco quando este não está comprometido. O que é comprometimento com o trabalho? Cumprir os deveres e ser respeitados seus direitos. qualquer exigência além desta é abusiva e colonizadora. 

Os pilares do programa é desempenho e relacionamento com o banco. O desempenho faz parte dos deveres, e por isso deve ser avaliado de forma transparente, com critérios objetivos e de modo participativa (que não é clicar em botões de um aplicativo…a não ser que tenha sido mudado o conceito de participa-ação na psicologia organizacional e na administração para participa-não). Qual o grau de participação dos funcionários na parafernália do sistema de avaliação de desempenho do Banco? Um sistema que parte do pressuposto que não existe trabalho vivo, apenas prescrições a serem executadas. São 25 anos de pesquisa em psicodinâmica do trabalho e outras abordagens apontando que a discrepância entre o que é prescrito e o que se faz na prática deve ser considerado no desempenho do trabalhador, pois tem um trabalho invisível que não é computado. Isso causa revolta, decepção e ressentimento. Então, se a avaliação de desempenho está baseada no prescrito exclusivamente e num modelo hierarquizado, porque ter um programa de reconhecimento? Uma contradição.

E o que é o reconhecimento? São muitos estudos que fazem a diferença entre reconhecimento e recompensas, benefícios e resultado, são dimensões diferentes, que a ferramenta CONEXÃO trata junto. Qual a consequência disso ? Esta é uma estratégia para a despolitização da categoria . É o mesmo que dizer que empregado é colaborador ou outros eufemismo, como aqui é uma família. Os eufemismos produzem o encobrimento das contradições. No caso, do sistema financeiro, a explicitação da contradição capital-trabalho. Se o funcionário é tratado como um prolongamento do Banco, ou seja, as ferramentas estimulam a identificação com o Banco “eu sou o banco e banco sou eu”, onde está sujeito o EU, a subjetividade, a autonomia, a independência de pensamento? O discurso esconde essas diferenças para oprimir a força do trabalhador que poderia confrontar a força do capital. Criar funcionários identificados e comprometidos afetivamente com o Banco cria uma divisão dentro da categoria. O bancário obediente e o revoltado. São estratégias que impedem a mobilização política da categoria. 

Mesmo que o programa defenda a transparência dos critérios de reconhecimento, esta é uma falácia. É impossível a gestão de pessoas acompanhar o processo considerando o trabalho vivo, que é inevitavelmente dissonante com as atividades prescritas e pior com os comportamentos prescritos, como: seja cooperativo, seja engajado, ser justo…Como é possível estes comportamentos diante de um sistema que faz premiações individuais, que dar destaque e paga pelo desempenho extra deveres. Pois os estímulos não estão no contrato de trabalho. São extra, ou seja, para além dos deveres. O funcionário além de fazer suas atividades, tem que jogar, disputar, competir para ganhar benefícios como se não existisse mais os direitos, sendo  que os direitos trabalhistas como salário e benefícios estão obrigações da empresa, que tenta distrair os funcionários com jogos infantes e neuróticos para esconder a realidade, como “A balinha para enganar a fome”. 

As ações de reconhecimento propostas são descoladas do trabalho, são ações pessoais e não profissionais como comemoração de datas tais como aniversários, nascimento de filhos, conclusão de curso superior, especialização, aniversário corporativo, aposentadoria. 

Vale destacar o que o normativo prescreve, individualizando e aumentando as responsabilidade e atividades do funcionário para muito além do seu horário de trabalho, dos deveres e obrigações com suas atribuições profissionais, o ganhador será o “super-homem ou super-mulher”, e olhe lá se serão capazes, ou seja, uma ficção passada pelo discurso como uma possibilidade. Este é o conceito de ideologia do possível do discurso neoliberal…:

“valorização do funcionário ou equipe, por participação em eventos esportivos, artísticos ou culturais, promovidos por entidades reconhecidas pelo Banco (Febraban, FenaBB, FBB, Federações Esportivas Nacionais, Ministério da Cultura e outras Instituições de relevância nacional); congratulações, prêmios, mensagens de agradecimento à colaboração relevante e evento semestral ou anual de premiação das dependências destaque, pelo desempenho; e práticas que resultaram na conquista ou fidelização de clientes, na elevação do índice de satisfação de clientes, no alcance ou superação de metas do Acordo de Trabalho e do Conexão BB, na melhoria de processos internos, na melhoria do clima organizacional, no desenvolvimento de competências necessárias à excelência profissional, no êxito do programa de voluntariado que gere reforço da imagem institucional do Banco do Brasil na comunidade, na promoção da Qualidade de Vida no Trabalho etc.” 

Quem poderia ficar feliz por ganhar este prêmio? Esta é questão da subjetividade colonizada que me interessa nos meus estudos. Porque este sujeito existe, quer dizer, ele foi fabricado por este discurso. É o sujeito encantado pelo canto da sereia. E como trazer ele de volta ao mundo dos humanos?

Nossos estudos a partir da escuta dos bancários que realizamos no sindicato dos bancários Brasilia, hoje intitulado Observatório de Saúde do Trabalhador, fundamentam as críticas dos modelos de avaliação de desempenho e recompensa (não é reconhecimento, isso é um eufemismo) e demonstram a produção de danos severos a subjetividade, aos laços sociais e produz as psicopatologias como a indiferença, a violência, a normopatia e a melancolização. 

São muitas as  práticas perversas de gestão de pessoas…Alguns programas criados por empresas e oferecidos aos trabalhadores visam uma solução coletiva, objetivando tarefas funcionais, sem comprometer a dinâmica produtiva no trabalho. As ofertas são variadas, entre elas: alongamento e massagem, especialmente para os trabalhos repetitivos; atividades circenses; yoga do riso; coaching movement; life coaching; palestras informativas sobre as principais doenças do mundo do trabalho. O grande objetivo deste tipo de programas é criar um mundo artificial de felicidade, uma máscara para as dificuldades do real, sempre para garantir o mesmo nível de produção (ou se possível aumentá-la).

Vale citar Enriquez (1996, p.19) ao analisar as contradições envolvidas na manipulação da subjetividade, ressalta que“a administração estratégica faz parecer respeitar o sujeito humano, mas para aliená-lo mais ainda. Porque não se trata somente, (…) de certificar-se de sua consciência profissional, trata-se de provocar uma adesão passional, por uma gestão não apenas do afetivo como ainda do inconsciente”.

As ferramentas sustentam o discurso no qual “não basta vencer, mas é necessário eliminar o outro”. Ancorado em uma crença absoluta na divisão de um mundo do trabalho dos vencedores e dos perdedores, muitos se submetem ao funcionamento automático de extermínio. Sob qualquer preço eu me submeto às ordens dadas, me torno poderoso e promovo a mesma violência com os meus subordinados. Percebe-se assim, que o teatro criado necessita de personagens. Não são sujeitos que apontam para um fundamento, nem identidades que indiquem uma unicidade, mas uma visão teatral de performance, distanciando a vida psíquica interior para tornar o sujeito uma reflexão vislumbrada no espelho do meio circundante.

Os modelos de gestão, segundo diversos autores, está contaminado por uma “violência da excelência” (Monroy, 2000), decorrente, por exemplo, da aplicação da gestão pelo estresse (Parker & Slaughter, 1995). É encenado um mundo sem contradições, puro e paradisíaco, o qual, obviamente, é falso. O sujeito é separado do pensar, do afeto, do desejo, funcionamento extremamente útil para fomentar a patologia da indiferença cada vez mais banalizada. O capitalismo e um dos seus principais braços armados – as técnicas de gestão – colonizaram de forma brutalizante os corpos e as mentes dos trabalhadores. É neste sentido que Foucault (1977) preconiza que o poder atribuído à gestão tem como função tornar os corpos dos trabalhadores “úteis, dóceis e produtivos”. Nesse cenário é consumada devoração do sujeito, a sua captura, a vampirização do corpo, da mente e da alma do trabalhador; é através dos modelos de gestão que se concretiza, de modo sofisticado e subtil, a expulsão do sujeito da cena do trabalho (Mendes, 2018). Metaforicamente, podemos afirmar que as empresas modernas são uma espécie de “ditadura”, gerida por princípios não democráticos (incluindo no setor público).

No mundo hodierno, aquilo que se verifica é que o trabalho permanece no centro da subsistência, mas, simultaneamente, remete a esmagadora maioria dos trabalhadores para a ultra-periferia da existência. Atualmente, os trabalhadores estão sujeitos a formas predadoras de gestão, das quais não se conseguem libertar.  E qual seriam as possíveis saídas? Fazer aposta nos espaços de discussão coletiva e na produção de discursos produtores de saberes sobre a força e o poder dos trabalhadores…

Ana Magnólia é professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília (UnB) e uma das coordenadoras da Clínica do Trabalho do Sindicato