Artigo: A mudança é inadiável e a ruptura necessária. Apontamentos para uma transição ecossocialista a partir da perspectiva sindical

0

Daniel Machado Gaio*

As crises instauradas desde a pandemia da covid-19 não devem, de forma alguma, ser subestimadas. Entretanto, devemos tratá-la como alerta de algo mais terrível, que se aproxima. Essa ponta de iceberg descortina a inexorável necessidade de mudança no modelo econômico e de desenvolvimento. Explicita as gritantes contradições do capitalismo e a dimensão ambiental de sua crise. O mainstream financista tem forçado uma suposta reorganização para enfrentar esta realidade. Porém, precisamos apontar que as saídas para a atual crise somente serão possíveis se subverterem essa lógica do rentismo e mesmo a do consumismo e do produtivismo. Desta forma, o movimento sindical brasileiro e mundial se encontra diante do desafio de incorporar de forma efetiva na sua estrutura e agenda política as novas demandas da sociedade e da classe trabalhadora, atualizando o enfrentamento anticapitalista na perspectiva ecossocialista, feminista e antirracista

O mundo clama por saídas da crise diferentes e as respostas dadas até hoje têm sido insuficientes, muitas delas repetindo os mesmos erros que geraram a realidade atual. Nas últimas décadas, o movimento sindical, em aliança com movimentos sociais e organizações ecologistas, denuncia a insustentabilidade do modelo neoliberal que, além de enfraquecer o Estado, provocou uma crise sanitária, social, ecológica e climática da qual a pandemia é uma das consequências. É nesse contexto de denúncia que a discussão sobre a crise climática se insere no Brasil e no mundo. Nos espaços de discussão, a participação ativa do movimento sindical enfatiza os impactos desse problema real na vida de trabalhadores e na qualidade dos empregos. Alerta sobre a necessidade de mitigar esses impactos e combater a crise, protegendo a classe trabalhadora.

O sindicalismo está desafiado a incorporar amplamente essa agenda, no contexto de transformações do mundo do trabalho e de crise no sistema, intensificada pela pandemia. É um contexto que nos impõe maior agilidade em organizar respostas.

Nesse texto, propomos cinco elementos organizadores para esse debate. Ao final, tratamos sobre a dimensão brasileira e as perspectivas de enfrentamento.

1. O que está em risco é o futuro da humanidade, não do planeta

A pandemia é fruto do sistema capitalista e não uma consequência do acaso, ou uma auto-geração biológica da natureza. Trata-se de um sofisma dizer que o planeta está em risco, uma vez que este tem capacidade de continuar existindo e se reconstituindo independente das formas de vida que nele habitam. O que está em crise e posto em risco é o mundo como ele é hoje e o que faz a nossa vida nele possível. Ao nos aproximarmos num ritmo cada vez mais acelerado do chamado ponto de colapso, o já evidente desaparecimento de espécies causado pelas alterações antropogênicas pode provocar um efeito em cadeia que leva à destruição de outras espécies. No campo ecológico esse modelo de produção com avançado processo de mercadorização e mercantilização da natureza traz consigo as mudanças climáticas, o esgotamento ou poluição de recursos naturais e uma brutal diminuição da biodiversidade.

2. Uma tarefa para nossa geração

É recorrente neste debate a afirmação, também sofística, que adia a preocupação para as gerações futuras, para os próximos cinquenta, cem anos. Para além do princípio da responsabilidade intergeracional, essa abordagem é equivocada, pois trata de adiar respostas que devem ser urgentes. A geração atual já sofre profundamente as consequências principalmente os mais pobres, as mulheres, negros e negras, as periferias, os trabalhadores e trabalhadoras rurais e populações dos territórios e biomas que se encontram em risco, visto que a crise ambiental, sanitária e as mudanças clima ticas se configuram como uma realidade de oneração daqueles que não dão causa e elas, aprofundando as vulnerabilidades.

3. É uma crise gerada pelo modo de produção

Não podemos negar que as mudanças climáticas e a crise ecológica que vivemos são resultado da atividade humana, porém ela só promoveu alterações significativas nas temperaturas e no ecossistema a partir do início da revolução industrial e seu consequente o aumento exponencial da demanda e do uso de energia, ancorado no consumismo necessário à manutenção desse modo de produção. É da lógica de funcionamento do capitalismo sobrecarregar a natureza, explorando-a negativamente, ora como recurso, ora como mercadoria.

A atual crise ambiental não é, como querem alguns negacionistas, um dado externo e independente da lógica de funcionamento do sistema, mas o resultado de um processo de exploração e esgotamento, tanto do trabalhador quanto da natureza. Uma “crise permanente (de caráter conjuntural e estrutural) na perpétua guerra da produção de mercadorias e acumulação do lucro”.

Assim como na indústria urbana, na agricultura moderna o incremento da força produtiva e a maior mobilização do trabalho são obtidos por meio da devastação e do esgotamento da própria força de trabalho. E todo progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo, pois cada progresso alcançado no aumento da fertilidade do solo por certo período é ao mesmo tempo um progresso no esgotamento das fontes duradouras dessa fertilidade.

4. As saídas estão fora do mercado

Frente à evidente crise climática e socioambiental e ao reconhecimento da sua urgência, setores da economia capitalista, autointitulados Economia Verde, têm se desdobrado para se apresentarem como precursores de um novo modelo de desenvolvimento que considera os limites ambientais, apontando soluções de mercado para mitigar impactos ou solucionar quase que milagrosamente problemas por eles mesmos criados.

Tratamos por “falsas soluções”, as propostas e medidas que sustentam a ideia de que tudo deve mudar para que nada mude. O cardápio de falsas soluções apontado pelo capitalismo verde estabelece uma nova fetichização da mercadoria, do capital e das tecnologias e designa a essas últimas o papel de desenvolver as soluções para a crise ambiental, climática e sistêmica, seja intervindo artificialmente no clima, nos genes, nos solos, na economia. Geoengenharias, Biologia Sintética, Internet da Coisas (mas também internet dos corpos ou digitalização dos seres vivos, numa visão reducionista de que somos um aglomerado de genes) são partes de uma grande estrutura por meio da qual o capitalismo tenta resolver os problemas que ele mesmo criou e, para além, ampliar ainda mais o domínio e apropriação da natureza para gerar riqueza aos proprietários dessas tecnologias e continuar promovendo um crescimento econômico indefinido (sem limites e extremamente desigual).

Numa evidente atualização dos princípios da acumulação, em certo momento da História, o dinheiro se converteu na síntese de todos os bens e necessidades. Agora, os códigos binários e algoritmos estão tomando esse lugar. Até então, a disputa era para transformar tudo em mercadoria – água, ar, florestas, sementes, educação e saúde. Agora, além disso, trata-se de transformar em algoritmos, desenvolvidos e dominados por poucos. A desigualdade e a concentração de riqueza aumentam e quem paga os custos da crise do capital são os setores pobres e médios da sociedade.

5. Que transição defendemos

Partindo destes elementos levantado acima, da centralidade do Trabalho e da necessária representação e organização da classe trabalhadora na construção da fatídica “nova normalidade” pós pandemia, entendemos que as disputas em torno das saídas da crise se relacionam diretamente com a organização da ação sindical, tanto no âmbito internacional quanto no local, no cotidiano dos sindicatos de base, disputando elementos da transição ecológica, em particular a partir da defesa do que chamamos de “transição justa”.

A transição ecológica para uma sociedade de baixo carbono demandará uma série de reformas estruturais que devem acontecer de forma ampla e democrática, visando a recuperação econômica, social e ambiental à atual crise e caminhar para um modelo que rompa com as atuais dinâmicas insustentáveis de mercado e que coloque no centro a vida e o trabalho.

Partimos de uma definição sindical de desenvolvimento sustentável que incorpora “trabalho decente, a distribuição da riqueza, a democracia participativa, a igualdade e a equidade de gênero, a proteção e a inclusão social de todos, a justiça ambiental e a transição justa, integrando as dimensões política, econômica, social e ambiental”.

Entendemos que com as mudanças de padrões de consumo, produção e matriz energética vários empregos serão perdidos por isso a importância do debate sobre uma transição justa. Para que os empregos que sejam criados nesse novo mundo, nesse novo processo produtivo, nessa nova normalidade sejam melhores e com melhores condições de trabalho e remuneração, assim como da apropriação do próprio trabalho e das ferramentas de trabalho pelos trabalhadores, de forma a romper com a profunda e crescente alienação do processo produtivo.

Uma transição justa deve ser capaz de gerar e garantir trabalho decente, proteção social universal, liberdade de associação, negociação coletiva, justiça social, igualdade de gênero, soberania alimentar e energética, com preservação de bens comuns, autodeterminação de povos e nações, no âmbito de processos democráticos participativos que envolvem todas as partes interessadas.

Parte central da proposta da transição ecológica envolve a transição para uma matriz energética mais limpa, porém discutir só a matriz é insuficiente. A democracia energética vai além do caráter renovável é também garantir o “que o controle da energia e dos sistemas energéticos atuais e futuros seja democrático e público. […] reivindicar o legado de luta pelos serviços públicos e questionar e reivindicar sua propriedade”.7

É fundamental que estes processos de reconversão e transição para uma economia de baixo carbono sejam feitos com participação ativa dos trabalhadores e trabalhadoras impactados assim como pelas comunidades garantindo não só os direitos, mas também permitindo que estes participem do desenho do modelo programático.

Discutir o papel do Estado no controle de empresas e setores estratégicos para o desenvolvimento é central nesse processo, considerando a possibilidade de estatização de empresas assim como o controle e proteção dos territórios e os bens comuns frente ao interesse corporativo que procura a sua apropriação e mercantilização.

O modelo energético se encontra no centro das discussões sobre a descarbonização. Porém, ao falarmos de disputa de modelo se faz necessário também discutir o papel do Brasil como exportador de commodities e quais as suas implicações para a classe trabalhadora e o meio ambiente.

Nas últimas décadas o Brasil centrou a sua economia num modelo primário que prioriza a exportação de commodities do agronegócio e da mineração, inseridas numa lógica mundial que, como já mencionado, é insustentável não só do ponto de vista ambiental como econômico e social.

Ambos setores demandam quantidades tremendas de água e energia (boa parte das vezes nem mensuradas na formação de preço dos produtos), geram impactos ambientais incalculáveis, são responsáveis por processos de conflito e violência no campo e na floresta, possuem elevada (e crescente) automatização e condições precárias e de terceirização da mão de obra, atuam para fragilizar ainda mais a legislação ambiental e trabalhista no país e a democracia como um todo, além de se beneficiarem de políticas fiscais que os privilegiam. Discutir o modelo mineral e agrário do país, por tanto, é elemento central para avançar na transição ecológica que defendemos.

Nos últimos cinco anos a insustentabilidade da mineração foi exposta através dos crimes de Mariana e Brumadinho, exemplos gritantes da necessidade de rediscutir este setor econômico. Devemos retomar a discussão sobre o Novo Código da Mineração, questionar as isenções fiscais, buscar alternativas para municípios dependentes destas atividades, assim como rediscutir onde se insere o modelo extrativo na nossa concepção de modelo de desenvolvimento.

No setor industrial, a chamada “quarta revolução industrial” ou “indústria 4.0” provocará impactos ainda não totalmente mensurados nas relações de trabalho, mas é certo que, somada às consequências da pandemia, produzirá um cenário de desemprego sem precedentes e dilemas éticos e legais relativos ao rompimento das esferas físicas, digitais e biológicas. Será urgente construir sistemas de proteção social, de forma que os principais causadores do colapso ambiental e climático não só mitiguem os efeitos de suas demandas de produção e consumo, mas também sejam responsabilizados e arquem com os custos para inverter esse ciclo que pode nos levar à extinção.

Quando tratamos do agronegócio não podemos deixar de questionar o sistema agroalimentar que adoece, contamina e gera desigualdade desde o campo até as cidades. Como contraposição apontarmos a agroecologia, a agricultura familiar, economia solidária e local como soluções viáveis e sustentáveis social, ecológica e economicamente.

O fortalecimento de alianças locais, regionais e globais deverá estar no centro da agenda do sindicalismo combativo nessa disputa de narrativa e de projeto. Para resistir aos mecanismos da economia verde, às falsas soluções sobre as mudanças climáticas e à destruição ambiental, é urgente visibilizar e fortalecer outras formas de organizar a vida e a economia. E, para além disso, além de desfetichizar as tecnologias, devemos rediscutir modelos de produção e consumo que reduzam a demanda de energia e de materiais. Reelaborar nossa interpretação sobre decrescimento econômico aliado à sustentabilidade, redução das desigualdades e justiça social e ambiental.

Trata-se da tarefa urgente: incorporar nas nossas elaborações, reivindicações e ações as abordagens integradas do ecossocialismo8, da economia ecológica e da economia feminista9, que apontam as ferramentas necessárias na superação das formas atuais de organização da economia, hegemonicamente capitalistas, patriarcais e colonialistas, de crescente e insustentável demanda de energia e materiais, de forma a sobrepor a sustentabilidade da vida como princípio organizador dos processos econômicos.

  • Daniel Machado Gaio é sociólogo, Mestre em Políticas Públicas para Educação pela Universidade de Brasília. Dirigente da Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT) e Secretário Nacional de Meio Ambiente da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Fonte: Revista Ciências do Trabalho n. 18 Trabalho e Meio Ambiente