Na semana passada, o STF (Supremo Tribunal Federal) anunciou o adiamento para 6 de outubro de um dos mais aguardados eventos promovidos pela Corte neste segundo semestre: a audiência pública sobre a “pejotização” — como é conhecida a contratação de um trabalhador por meio de pessoa jurídica (PJ).
Há pelo menos dois anos, a maioria dos ministros do Supremo tem derrubado decisões da Justiça do Trabalho que apontam fraudes, reconhecem o vínculo empregatício e determinam o pagamento de direitos, nos moldes da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em processos sobre pejotização.
Em abril, o decano da corte, Gilmar Mendes, suspendeu a tramitação de todas as ações em curso no país sobre o assunto, até a publicação de um entendimento do STF válido para todos os casos.
A audiência convocada por Gilmar Mendes servirá de baliza não apenas para a decisão do Supremo sobre a pejotização, mas também pautará o posicionamento do tribunal sobre a uberização (a mediação de trabalho por aplicativos) e a terceirização de forma geral.
Especialistas e autoridades trabalhistas consideram a pejotização uma burla à CLT, com impactos bilionários para os cofres públicos — principalmente para o caixa da Previdência.
Segundo um estudo do economista Nelson Marconi, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas), o Estado deixou de recolher até R$ 144 bilhões, entre 2012 e 2023, devido ao avanço dessa modalidade no país.
“Como é que você resolve isso? Acho que tem uma questão jurídica e uma questão econômica”, diz Marconi, em entrevista à coluna.
“A primeira coisa, do ponto de vista legal, é o Supremo entendendo que essa prática [da pejotização] não está baseada na legislação”, observa o professor.
“A segunda coisa é que precisa ter alguma mudança do ponto de vista tributário. A tributação sobre o Simples [regime simplificado em que se enquadra a maioria dos profissionais PJ] é muito baixa, e a outra [sobre a CLT] é muito alta”, afirma.
Leia abaixo a íntegra da entrevista.
Críticos dizem que o STF tem promovido um “libera-geral” de terceirizações que, no limite, pode significar o fim do direito do trabalho tal qual o conhecemos, e desestruturar o financiamento da Previdência Social. Qual é sua avaliação?
A reforma trabalhista possibilitou uma interpretação mais ampla do que seria a terceirização. O que acontece é que as empresas muitas vezes estão terceirizando pensando não para uma empresa, mas para uma pessoa física, para uma empresa de uma pessoa — é o caso do Simples [regime tributário da maior parte das PJs] e do MEI (Microempreendedor Individual), principalmente.
O que acontece? Você tem uma perda de direitos sociais, por um lado, para o trabalhador. Para o outro lado, o da empresa, tem uma redução de encargos. Você desmonta a estrutura de organização do trabalho, organização sindical, a rede de proteção social.
Muita gente fala: “Ah, essa estrutura é arcaica, não sobrevive ao tempo”. Você pode modernizar uma série de pontos da relação do trabalho, mas tirar essa relação que existe entre empresa e trabalhadores, os direitos sociais, é um desmonte de muita coisa que foi construída ao longo do tempo.
Um estudo realizado pelo senhor calcula entre R$ 89 bilhões e R$ 144 bilhões a perda de arrecadação para os cofres públicos entre 2012 e 2023 decorrente da prática da pejotização. O senhor poderia detalhar essa conta?
A gente fez uma diferença entre o que poderia ser arrecadado se eles fossem celetistas [contratados segundo as regras da CLT] e o que deixou de ser arrecadado.
Por que tem diferença de R$ 144 e R$ 89 bilhões? Porque, se eles tivessem sido contratados como celetistas em empresas do Simples, a arrecadação teria sido menor. Se eles tivessem sido contratados [como celetistas] em empresas do lucro real presumido, a arrecadação teria sido maior. Por isso que tem essa diferença muito grande.
São esses tributos que a gente citou aqui [no estudo] que deixaram de ser arrecadados: tem o recolhimento do fundo de garantia, tem a contribuição para o INSS, tem a contribuição sobre seguro de acidente do trabalho, salário-educação, sistema S, benefícios previdenciários. Fundamentalmente, é o INSS, a Previdência. Tem uma rede [de proteção social] que é sustentada por esses recursos.
Existe uma tendência em curso de pejotização entre trabalhadores de renda mais alta. O emprego CLT, até em virtude das decisões do STF, tem se convertido em uma realidade para a base da pirâmide que ganha de um a dois salários mínimos?
Teve um aumento da pejotização e ela é muito forte no nível superior. Vamos comparar funcionários empregados de nível superior, tanto celetistas como pejotizados, para controlar a questão da escolaridade: esse grupo dos PJs está inclusive ganhando mais.
Eu diria que existem alguns fatores que estão fazendo eles ganharem mais. O principal é a diferença entre a tributação que existe para o PJ e para o celetista. Se esse problema não for resolvido, você vai ter uma segmentação do mercado de trabalho muito forte.
As pessoas vão migrar para esse outro regime [o pejotizado], porque elas vão pagar menos imposto. E a empresa muitas vezes fala: “Olha, eu vou te oferecer um salário um pouco maior, compensando o que a gente vai deixar de pagar de imposto”.
A pessoa, quando tem escolaridade em nível superior, tem uma capacidade maior de fazer uma previdência privada, de fazer uma poupança. O que não acontece com o trabalhador de baixa renda. Para o pessoal de mais baixa renda, a carteira assinada faz muita diferença, porque dá mais estabilidade, acesso aos direitos sociais.
Eu sou um defensor ferrenho do trabalho com carteira assinada, mantendo o vínculo empregatício, quando realmente ele existe. Eu espero que o Supremo não generalize essa questão [liberando a pejotização indiscriminadamente].
Mas, olhando do ponto de vista econômico, alguma coisa tem que ser feita para aproximar esses dois mercados de trabalho. A tributação sobre o Simples é muito baixa, e a tributação sobre a carteira está relativamente alta, algo como 70%.
O problema é necessariamente a legislação trabalhista ou justamente a existência de uma série de subterfúgios, como a pejotização? É preciso corrigir a assimetria que existe atualmente e garantir que um PJ pague o mesmo nível de imposto de um CLT para combater, inclusive, a injustiça tributária?
Primeiro, tem a proteção que é fundamental para os trabalhadores menos qualificados. Então, é essencial ter a carteira de trabalho. Pensando nos mais qualificados, tem uma assimetria. Como é que você resolve isso? Acho que tem uma questão jurídica e uma questão econômica.
A primeira coisa, do ponto de vista legal, é o Supremo entendendo que essa prática [da pejotização] não está baseada na legislação. Se ele decidir na direção contrária, vai ser um golpe muito forte. Para os trabalhadores de baixa renda, [a carteira] pode continuar existindo, mas, para os mais qualificados, esquece…
A segunda coisa é que precisa ter alguma mudança do ponto de vista tributário. A tributação sobre o Simples é muito baixa, e a outra é muito alta.
Ou seja, a legislação trabalhista não poderia ser burlada, mas, se for, é preciso ter algum mecanismo para garantir a equalização da arrecadação. É preciso mudar, por exemplo, o regime de MEI, que é uma bomba-relógio para a Previdência?
Exato. Quando se criou o MEI, você estava pensando na pessoa que vai abrir um salão de cabeleireiro, que vai fazer um serviço pessoal — e você estava dando uma vantagem para ela [garantindo a cobertura básica do INSS a partir de uma contribuição mensal de 5% sobre o salário mínimo]. Mas estão colocando todo mundo, porque às vezes são obrigados a fazer isso: médico, jornalista…
Se você não desenha bem a política pública, o efeito que ela gera é diferente do que você imaginava. Agora, reverter isso não é uma coisa tão tranquila. Imagina virar para todas as pessoas que se tornaram MEI e dizer: “Olha, vocês vão pagar mais imposto”? Qualquer governo que fizer isso perde a eleição. Ninguém vai fazer isso de imediato.
Como resolver, então?
Uma possibilidade é restringir muito o que possa ser MEI. E aí deixa muito claro: é realmente para quem é empreendedor individual, não para o médico que trabalha no hospital. Esse cara não é empreendedor. Ele está burlando a legislação.
A outra possibilidade é sentar todo mundo à mesa e falar: “Olha, nós vamos ter que acertar e deixar mais próxima a tributação entre esses dois mercados [o celetizado e o pejotizado]”. Da forma como está, você está criando uma segmentação absurda no mercado de trabalho, e a tendência do ponto de vista prático é acabar com a carteira.
E os impactos sobre a Previdência?
A Previdência no Brasil é um sistema que a gente chama de repartição, e tem uma solidariedade intergeracional.
Se você começa a disseminar a MEI, o que acontece? A contribuição para a Previdência é muito mais baixa. Tudo bem: a aposentadoria dele no futuro vai ser mais baixa. Mas, no presente, o fluxo da de receita da Previdência cai muito para pagar quem está aposentado hoje. Então, provoca um desequilíbrio da Previdência muito rápido.
Se ele [o MEI] for um profissional de nível superior, ele ainda tem como fazer a poupança. Se for um profissional menos qualificado, vai chegar lá na frente, não vai ter essa rede de proteção. Ele vai ter o SUS, mas não vai ter auxílio-doença, não vai ter 13º, não vai ter um fundo de garantia para sacar quando se aposentar. Onde isso vai bater? Vai bater no Estado.
É preciso repensar as fontes de financiamento dos programas de proteção social?
Quando você financia essa rede de direitos sociais com encargos sobre o trabalho, isso onera também o setor produtivo. Uma boa parte dessa rede de proteção social deveria ser financiada com a tributação sobre a renda dos mais ricos, sobre o patrimônio.
Se você tem uma tributação muito excessiva sobre a produção, você vai perder espaço para os asiáticos. Foi o que aconteceu na Europa. Você tem que criar uma outra fonte de financiamento que não esteja ligada diretamente ao direito [trabalhista]. Eu acho que é uma saída.
Mas o governo está com dificuldades de aprovar no Congresso a alíquota mínima de Imposto de Renda de 10% para quem ganha R$ 600 mil ao ano. Como resolver?
Você tem que colocar isso dentro de um conjunto mais geral de reformas. O governo fez uma reforma muito específica de tributação sobre bens e serviços e falou: “Ah, não vou mexer na renda agora”.
No começo do governo, tinha que ter feito uma uma proposta de reforma tributária mais ampla. Agora, isso é para começo de governo. Tudo muito negociado, explicando como é que você vai fazer isso. Não é tranquilo, mas é o que a gente tem que pensar do ponto de vista da sociedade.
Fonte: UOL