No Brasil, mistérios de um golpe de Estado judicial

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A Operação Lava Jato, ligada ao mais importante escândalo de corrupção da história brasileira recente, teve início em março de 2014. Ficou sob a responsabilidade do juiz Sérgio Moro, que tinha mostrado as garras em 2005 quando era assistente em outra questão muito midiatizada: o escândalo do Mensalão, concernente ao pagamento, pelo PT, de propinas a deputados em troca de apoio.

Moro descrevera seu modo de proceder em um artigo publicado em meados da década de 2000. Consiste em imitar os procedimentos utilizados por ocasião da Operação Mani Pulite [Mãos Limpas], que, no início dos anos 1990, derrubou os partidos de governo italianos, antecipando o fim da Primeira República. Em seu texto, Moro salienta a importância de dois aspectos desse método: o recurso à prisão preventiva, de modo a incitar a delação, e a divulgação na imprensa, calibrada para suscitar a ira da opinião pública e pressionar suspeitos e instituições. De acordo com ele, a cenografia midiática tem mais importância que a presunção de inocência.

Durante a Operação Lava Jato, o juiz brasileiro revelou talentos ocultos de produtor artístico. Ataques, prisões com grande espetáculo, confissões: apelos na imprensa e nas redes de televisão garantiram em cada etapa uma grande cobertura das operações que ele orquestrou. Cada uma mais dramática que a outra, elas foram numeradas e dotadas de código emprestado do imaginário cinematográfico, clássico ou bíblico: Dolce Vita, Casablanca, Aletheia (“verdade”, em grego antigo), Julgamento Final, Omertà, The Abyss [no Brasil, O segredo do abismo] etc. Os italianos se vangloriam de ter um senso inato de espetáculo? Moro os fez passar por amadores.

Durante um ano, as acusações miraram antigos diretores da empresa nacional de petróleo Petrobras, acusados de ter recebido propina, antes de provocar a queda do tesoureiro petista João Vaccari Neto e dos dirigentes das duas maiores empresas de construção civil e obras públicas do país: Odebrecht1 e Andrade Gutierrez. As manifestações de apoio a Moro ganharam força. Exigindo a punição do PT e a saída da presidenta Dilma Rousseff, elas pressionaram o Congresso. Só faltava ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, colocar na ordem do dia a destituição da presidenta.

Arte: Paulo Ito
Juízes, justiceiros ou políticos

Isolada e enfraquecida, Dilma pediu ajuda ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele utilizou sua habilidade de negociador para reparar as relações com o antigo aliado, o PMDB. Cunha, que parecia ter colocado vários milhões de dólares em contas secretas na Suíça, propôs um pacto de proteção mútua: ele interromperia suas investidas contra a presidenta se o governo lhe fizesse um favor. Lula solicitou a Dilma que aceitasse a mão que lhe era estendida; ela se recusou, com o apoio da direção nacional do PT, que temia que a cumplicidade fosse descoberta. Por fim, os deputados do PT apoiaram as acusações contra Cunha, que reagiu lançando o processo de destituição.

Por sua vez, Moro preparou o tiro fulminante. No início de março de 2016, ele desencadeou a Operação Aletheia. Lula foi interpelado nas primeiras horas do dia, diante das objetivas das câmeras, tendo a mídia sido avisada antes. Suspeitava-se que o ex-presidente tinha se beneficiado da generosidade da Odebrecht. Seguiram-se outras investidas. Moro interceptou – e divulgou para a imprensa – uma conversa telefônica entre Dilma e Lula, que ele grampeara. Nela, os dois dirigentes se referem à possibilidade de este se tornar ministro-chefe da Casa Civil. Como os funcionários de escalão ministerial e os membros do Congresso desfrutam de foro privilegiado, não há a menor dúvida de que se tratava de uma estratagema para impedir sua prisão.

A pressão da rua em favor da destituição chegou a seu paroxismo. Na Câmara, no entanto, nada indicava que a maioria dos dois terços seria obtida. Novas incursões divulgaram anotações da Odebrecht que detalhavam as quantias transferidas para cerca de duzentas personalidades pertencentes a quase todos os partidos. Na classe política, todos os sinais estavam vermelhos: um membro do primeiro escalão do PMDB foi gravado sem que soubesse dizendo a um colega que “é preciso estancar a sangria”. Ora, “os caras do Supremo Tribunal” lhe disseram que isso parecia impossível enquanto Dilma estivesse no poder, uma vez que a mídia estava contra ela. Não havia outra opção, explicou ele, a não ser substituí-la o mais rápido possível pelo então vice-presidente, Michel Temer, e formar um governo de união nacional apoiado pelo Supremo Tribunal e pelo Exército. Em menos de duas semanas, a Câmara aprovou a destituição da presidenta, deixando o campo livre para Moro se desembaraçar de Cunha, que tinha se tornado inútil. Este logo foi expulso da Câmara e acabou na prisão. O Senado validou a destituição da presidenta e Temer assumiu a direção do país.

No início de 2017, Lula foi acusado com base em suspeitas de corrupção ligadas à aquisição de um apartamento à beira-mar do qual jamais foi o proprietário legal. Julgado em Curitiba no verão do ano seguinte, foi condenado a nove anos de prisão. Na apelação, a pena subiu para doze anos. Com o primeiro presidente vindo do PT atrás das grades e a segunda destituída sob escárnio, o naufrágio do partido parecia total.

Duas análises do papel dos juízes surgiram então. A primeira os descreveu como justiceiros determinados a lançar por terra a corrupção; a segunda, como agentes políticos prontos a qualquer coisa para chegar a seus fins. Em sua obra O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018), o cientista político brasileiro André Singer rejeita as duas. Segundo ele, os juízes se mostraram perfeitamente republicanos e, ao mesmo tempo, inegavelmente facciosos. Republicanos: como descrever de outra maneira a prisão dos diretores das empresas mais ricas e poderosas do país? Facciosos: que outro sentido dar à perseguição sistemática dos membros do PT enquanto os de outros partidos – exceto Cunha, que se tornou extremamente inconveniente – foram poupados? Sem falar das afinidades políticas dos juízes, dos anátemas que lançaram no Facebook ou das fotografias em que os vemos posar, sorrindo, exibindo os símbolos de partidos conservadores. Uma pergunta subsiste: esses juízes foram republicanos e facciosos em proporções equivalentes?

Pena reduzida para dono da Odebrecht

No sistema judiciário brasileiro, policiais, procuradores e juízes formam corpos independentes uns dos outros. A polícia reúne as provas, os procuradores proferem as acusações e os juízes arbitram as penas (no Brasil, os júris populares só intervêm em casos de homicídio). Todavia, na prática, as três funções se fundiram na ocasião da Lava Jato, quando a polícia e os procuradores trabalharam sob a supervisão do juiz que controlou as investigações, determinou as penas a serem cumpridas e as pronunciou: uma inegável negação dos mecanismos básicos da justiça, que preveem a separação da acusação e da condenação (sem mencionar o fato de o juiz Moro ter varrido de uma hora para outra o princípio da presunção de inocência).

Outra invenção do sistema judiciário brasileiro: a “delação premiada” permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão pesadas, a menos que ela contribua para envolver outra condenável – o equivalente judiciário a uma chantagem. É possível calcular as derivas para as quais contribui um dispositivo como esse no caso de Marcelo Odebrecht, o empresário mais rico interpelado na investigação. Condenado a dezenove anos de prisão por corrupção, ele teve sua pena reduzida para dois anos e meio a partir do momento em que se curvou ao jogo dissimulado da delação. Nesse contexto, teria de se esforçar para superestimar a pressão submetida de modo a fornecer aos magistrados os elementos suscetíveis de contribuir para avançar as investigações que mais os preocupavam.

Mas tudo o que precede pesa finalmente pouco no que diz respeito à introdução do conceito de domínio do fato: a possibilidade de condenar alguém na ausência de prova direta de sua participação em um crime, de acordo com a ideia de que a pessoa pode ser responsável por ele. Esse mecanismo deriva daquele de Tatherrschaft (“controle do ato”), criado pelo jurista alemão Claus Roxin para condenar criminosos de guerra nazistas. Mas Roxin denunciou a utilização brasileira do princípio: figurar em uma posição ou outra num organograma não é suficiente, diz ele, para estabelecer a responsabilidade por um crime. É preciso, além disso, que a justiça possa provar que o dito crime tenha sido comandado pelo acusado. E o juiz Moro não se preocupou com essas sutilezas. Por supostamente ter recebido um apartamento no valor de US$ 600 mil, Lula foi condenado a doze anos de prisão2: dois terços da pena de prisão inicial de Odebrecht por menos de 2% da quantia que este último foi acusado de ter desviado.

Moro não sofreu nenhuma punição

Nesse contexto, a ação do tribunal de Curitiba correspondeu, entretanto, mais ou menos ao coquetel identificado por Singer: uma dose de zelo republicano e outra de estratégia facciosa. Quando se sobe novamente na hierarquia judiciária até o STF, as coisas mudam. Nesse caso, nem o rigor ético nem o fervor ideológico. As motivações mostraram-se bem mais sórdidas3.

Ao contrário de seus equivalentes em outros lugares do mundo, o Supremo brasileiro combina três funções: ele interpreta a Constituição, desempenha o papel de corte de apelação de última instância para os processos civis e criminais e, por fim, concentra a faculdade de acusar dirigentes políticos – membros do Congresso e ministros –, que desfrutam, sem ele, de uma imunidade conhecida como foro privilegiado. Os onze membros do STF são nomeados pelo Poder Executivo. Ao contrário do que se passa nos Estados Unidos, sua aprovação pelo Legislativo é apenas uma formalidade. Nenhuma experiência anterior em tribunais de justiça é requerida: basta ter atuado como advogado ou procurador.

A nomeação dos membros do Supremo sempre se baseou mais em lógicas de redes do que em afinidades ideológicas. Na equipe atual, um dos membros foi advogado de Lula, um segundo deve favores ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e um terceiro é primo do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Quando a pressão do público exigindo a destituição de Dilma chegou ao auge, oito dos onze membros do STF tinham sido escolhidos por ela e por seu antecessor. Mas, exibindo a cor política do camaleão, os juízes que deviam sua indicação ao PT procuraram precisamente salientar sua independência em relação ao partido do poder. Eles se contentaram com os fatos de substituir uma forma de obrigação de fidelidade e obediência a um soberano por outra: eles se esqueceram dos caciques do PT e obedecem, a partir de então, à mídia dominante.

Desde o início da operação, a equipe de Curitiba utilizou as divulgações e as revelações à imprensa para provocar um curto-circuito nos procedimentos normais. Antecipar a estigmatização pública de um acusado antes de seu comparecimento é normalmente proibido, mas Moro se privou dessa proibição, ainda mais porque podia contar com os jornalistas para pressionar o Supremo. Quando um dos juízes da instituição o informou de que o princípio do habeas corpus exigia que ele libertasse um diretor da Petrobras, Moro procurou a imprensa e declarou que, nesse caso, precisaria libertar também traficantes de drogas. Seu superior voltou atrás. Após ter infringido três normas, incluindo as escutas telefônicas e o fato de tornar pública a conversa entre Lula e Dilma, o juiz Moro se justificou afirmando que tinha agido por “interesse público”. Celebrado como um herói nacional pela imprensa, não sofreu nenhuma repreensão.
Poucos dias depois de sua eleição para presidente, em outubro de 2018, Jair Bolsonaro anunciou que Moro havia aceitado o cargo de ministro da Justiça. Nos anos 1990, os magistrados italianos responsáveis pela Operação Mani Pulite lamentaram que seus esforços para lutar contra a corrupção tinham favorecido a subida de Silvio Berlusconi ao poder. No Brasil, a estrela da Lava Jato se alegra de fazer parte da equipe de um dos raros dirigentes políticos suscetíveis de fazer que Berlusconi seja visto como um personagem simpático.

Perry Anderson é historiador e professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Uma versão deste artigo foi publicada pela London Review of Books (7 fev. 2019).

1 Ler Anne Vigna, “Les Brésiliens aussi ont leur Bouygues” [Os brasileiros também têm seus Bouygues], Le Monde Diplomatique, out. 2013.
2 A esta primeira pena se acrescenta uma segunda, também de doze anos, pronunciada em fevereiro de 2019. (Nota da redação.)
3 Desde 9 de junho de 2019, o site norte-americano de notícias The Intercept revela uma série de mensagens criptografadas do juiz Moro que comprovam que ele manipulou a Operação Lava Jato para fins políticos.

Fonte: diplomatique