O curso “O profissional antifrágil”, oferecido pela Universidade Corporativa do Banco do Brasil (UniBB), foi retirado da plataforma de treinamento do banco após denúncias apresentadas pelos sindicatos de bancários de todo o país. O conteúdo foi considerado ofensivo e desrespeitoso aos trabalhadores, ao propor metáforas que comparavam funcionários a diferentes tipos de copos, classificando-os como frágeis ou resistentes diante das pressões do mercado.
O Sindicato reforça que bancárias e bancários que se sintam desrespeitados por conteúdos ou práticas no ambiente de trabalho podem realizar denúncia pelo Canal de Denúncias do Sindicato, assegurados o sigilo e o acolhimento.
O tema é analisado de forma aprofundada no artigo “Você quer ser tratado como um copo? O engodo do profissional antifrágil lançado pela UniBB”, assinado por Paulo Cesar Rodrigues dos Reis Filho e Ana Magnólia Mendes, do Instituto de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da UnB, e disponível para leitura completa abaixo.
Você quer ser tratado como um copo?
O engodo do profissional antifrágil lançado pela UniBB
Este texto visa lançar luz, a partir de uma perspectiva crítica, sobre o curso “O profissional antifrágil” lançado pela Universidade Corporativa do Banco do Brasil (UniBB). Antes de nos atermos ao conteúdo do curso, entendemos ser importante versar brevemente sobre as transformações históricas e institucionais que fundamentaram a instituição da UniBB, entidade criadora e promotora do curso. Dessa forma, o texto se compõe em duas partes, a primeira parte – “A fábrica de copos” – tem como objetivo analisar o processo histórico que desencadeou o surgimento da UniBB, e a segunda parte – “Faça de mim um copo(!/?)” – estabelece as críticas ao modelo de cooptação e controle subjetivo imposto aos bancários e bancárias do Banco do Brasil (BB) por meio do curso “O profissional antifrágil”.
As nomenclaturas das partes que compõem o texto fazem alusão direta à teoria dos copos de Nassim Taleb, autor de livros relacionados a investimentos e mercado financeiro, utilizada como base argumentativa do pensamento do profissional antifrágil. Essa divisão na composição do texto tem como intuito responder a seguinte pergunta, quais são as determinações políticas e econômicas presentes no curso “O profissional antifrágil” da UniBB implementadas pela Diretoria de Cultura e Gestão de Pessoas do Banco do Brasil?
A fábrica de copos
Para esta constituição do processo histórico da UniBB nos serviremos das datas apresentadas na área “Sobre a Universidade” da página da universidade. De acordo com a página da UniBB as raízes da instituição remontam ao ano de 1917 com a realização do primeiro concurso público para ingresso no Banco que havia em 1906 criado critérios institucionais para os processos de recrutamento e seleção de pessoal, e a incorporação no ano de 1965 da atividade de educação corporativa que se deu com a criação do Departamento de Seleção e Desenvolvimento de Pessoal (DESED), sendo instituída como Universidade Corporativa (UC) em 2002. Em 2013 foi inaugurado o Portal UniBB e em 2020 as atividades de “recrutamento e seleção” e “treinamento, desenvolvimento e educação” passaram a ser realizadas de modo integrado pela UniBB. Fazer um retorno aos acontecimentos históricos dos anos elencados acima nos possibilita ir ao encontro de chaves interpretativas que fornecem elementos para a compreensão dos realinhamentos institucionais ocorridos na área cultura e gestão de pessoas do BB.
Em 1917, o mundo se encontrava em um momento crucial da Primeira Guerra Mundial, com o Brasil tendo assumido alguns anos antes o papel de fornecedor de alimentos para os países da Tríplice Entente. O período de intensificação das exportações provocaram, por um lado, efeitos econômicos e sociais no país, como o aumento drástico da taxa de inflação acompanhada da elevação do custo de vida e a eclosão da greve geral em três centros urbanos do País movida por trabalhadores rurais, camponeses e operários da indústria reivindicando direitos trabalhistas, fim da exploração de crianças e adolescentes, diminuição da jornada de trabalho e melhores condições de trabalho, e fizeram surgir por outro lado, a necessidade de expansão operacional através da abertura de agências do BB em todos os Estados, em face à incerteza de finalização da guerra e a crescente movimentação financeira em áreas produtoras de alimentos no interior do país. Nesse momento de profundas transformações sociais surge a base do copo do BB, moldada pela expansão da presença do Banco em capitais econômicas e agrícolas do país, demandando o aumento no número de trabalhadores e preparação dessas pessoas para o exercício das funções.
Já em 1965, um ano após o golpe militar, ocorreu a chamada reorganização do Sistema Financeiro Nacional (SFN), promovida pelas Leis 4.380/64, 4.595/64 e 4.728/65, pretendendo instrumentalizar o combate à inflação. Com as alterações na legislação, o BB passou a atuar exclusivamente como um banco comercial, regendo a concessão de crédito rural e exportação, e transferindo sistematicamente para o recém criado Banco Central (BC) o papel de autoridade monetária do país, responsável pela emissão de moeda, controle da inflação e supervisão do sistema financeiro. Para além da reorganização das políticas monetárias e financeiras do Banco, é possível observar como efeito nos dois momentos históricos, 1917 e 1965, a implementação de metodologias de recrutamento e seleção e a estruturação de processos de treinamento e desenvolvimento de pessoas, respectivamente, que possuem estreita relação com a orientação política e com questões socioeconômicas predominantes nos seus períodos históricos do País.
Com o deslocamento da finalidade institucional do BB e a cedência de 1.200 funcionários para o BC, surge a necessidade de criação da DESED, instituída na data de 26 de maio de 1965 através da Portaria n° 1.935, sendo este departamento um órgão da Direção Geral subordinado ao Diretor-Superintendente, tendo como responsabilidade o recrutamento, seleção e formação do corpo de funcionários do banco frente às novas demandas institucionais. A área “Linha do Tempo” da página da UniBB destaca que as ações educativas da DESED se iniciaram desde o primeiro ano de existência, com os treinamentos realizados de maneira presencial e a distância, além do estabelecimento de parcerias com instituições de ensino, escolas de inglês e bolsas de estudo no exterior. Os cursos de formação profissional desenvolvidos pela DESED, em seu momento inicial, acompanhavam a dinâmica nacional vigente na ditadura militar, seguindo o discurso da administração científica de Taylor e Fayol, onde as palavras de ordem eram comando, organização e controle. Uma educação descolada da política, puramente instrumental e econômica.
A presença de artifícios tecnológicos no processo de educação corporativa se inicia de fato em 1988 com a produção de vídeos, aumenta nos anos 90, tendo como marco a criação da TV Corporativa do Banco do Brasil (TVBB), e se intensifica nos início dos anos 2000 com a oferta de um catálogo de cursos a distância e a criação do Portal do Desenvolvimento Profissional do Banco. Todo esse percurso de incorporação dos artifícios tecnológicos no processo de educação institucional deu-se em conjunto com transformações societais e mudanças na forma de compreensão que se deu na passagem da chamada sociedade industrial para a sociedade do conhecimento, possuindo esse fator fundamental importância na reestruturação, em 1996, do modelo organizacional da DESED em Gerência de Desenvolvimento Profissional (GEPED).
Os cursos promovidos pela recém criada gerência estavam alinhados aos pressupostos formulados pela gestão do conhecimento, com vistas à ideologia da excelência e aos modelos organizacionais baseados no gerencialismo e qualidade total com interesse irrestrito à lógica da competitividade. A política de gestão de pessoas da GEPED rompeu com o modelo de estabilidade do funcionalismo, onde lançando mão do Programa de Demissão Voluntária (PDV) instituiu uma nova cultura organizacional que começava a ser imposta através da adoção do paradigma da empregabilidade e do forte uso das metas no trabalho, um canto da sereia a serviço do capital que faz da instabilidade um mecanismo para aumento da produtividade através do controle das condutas, colocando sobre os ombros da classe trabalhadora a responsabilidade de sua manutenção no emprego feita a partir da submissão a necessidade contínua de aperfeiçoamento educacional com a falaciosa promessa de que isso representaria crescimento e autorrealização.
No final dos anos 90, dobra-se a aposta no conceito de gestão do conhecimento como fator de competitividade e tem-se na criação de Universidades Corporativas (UC) a possibilidade de confluir nas atividades educativas destas instituições as especificidades dos interesses estratégicos empresariais. As UC têm sua formação direcionada para o mercado de trabalho por meio da capacitação da mão de obra, formação da força de trabalho, feitas de maneira tecnicista, ou seja, moldando os trabalhadores para as necessidades da empresa, distanciando-se do papel da educação como formação humana integral. O BB, seguindo essa tendência educacional-mercadológica, criou em 11 de julho de 2002 a UniBB, ligada à Gerência de Educação e Desenvolvimento de Competências (GEDUC), gerência essa que foi concebida após novo processo de reestruturação no início dos anos 2000.
O surgimento das UC no Brasil é possibilitado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que permitiu a entrada de empresas educacionais no setor. Essa mudança no modelo educacional brasileiro foi germinada pela ideologia neoliberal da teoria do capital humano, apregoada pelo Consenso de Washington, de 1989, que ressalta que o investimento na formação aumenta a capacidade produtiva do trabalhador e promove ganhos salariais individuais e coletivos. Alinhando princípios econômicos do neoliberalismo à educação como método para atingir os objetivos de eficiência e produtividade, as UC elencam exclusivamente o pilar do ensino como mecanismo disciplinar do corpo e da mente dos trabalhadores.
Conforme pode-se ler no primeiro parágrafo dos relatórios anuais produzidos e divulgados pela UniBB, é colocado que “As ações da UniBB alinham-se a Estratégia Corporativa e contribuem para o BB concretizar a sua visão de futuro, atingir os seus objetivos estratégicos e fortalecer suas crenças e valores, consolidando o compromisso da empresa com as partes interessadas”. O último item citado nos chama atenção pela ênfase colocada no compromisso firmado com as partes interessadas, podendo essa representar a finalidade central das ações da UniBB.
Partes interessadas é a tradução para os chamados stakeholders[1], termo em inglês que significa “aquele que tem um interesse em jogo”, e que foi conceitualizado por Edward Freeman na década de 80, e diz respeito a uma estrutura de gerenciamento dos interesses das partes interessadas, que a princípio originou-se por meio do imperativo de maximização de lucros para os acionistas e satisfação das necessidades das partes interessadas. Estudos mais recentes da teoria dos stakeholders (TS) tentam realizar uma ponderação/equilíbrio entre as necessidades, demandas e desejos, das partes interessadas, não apenas dos acionistas. A TS compreende como parte interessada uma entidade (indivíduo ou pessoa) que pode influenciar ou pode ser influenciada por organizações que são orientadas para atingir determinados objetivos.
Em um contexto de redução dos tamanhos dos negócios e sob as lógicas da hiperconectividade e influência presentes no capitalismo digital desponta como tema na área o engajamento virtual dos stakeholders. Como forma de preencher essa lacuna, as organizações têm utilizado de maneira estratégica as tecnologias como modo de gerenciamento dos interesses e para a construção de uma identidade organizacional empática e supostamente alinhada às questões do contemporâneo.
Ao avançarmos um pouco mais no tempo, em janeiro de 2013 foi lançado o portal UniBB, mecanismo de mediação educacional que proporcionou a ampliação da capacidade de alcance dos cursos ministrados pela instituição, tendo como objetivo a formação de “agentes conscientes do significado do trabalho esclarecido, que busca corresponder às aspirações do Governo e dos demais acionistas”. Neste trecho presente no livro institucional do BB “Itinerários da Educação no Banco do Brasil” pode-se observar a divisão nos interesses entre aqueles que detêm apenas o trabalho (funcionários) e aqueles que possuem participação (Governo e acionistas), além de assinalar a quem se dedica todo o processo educacional de gestão dos interesses apregoados pelo Banco.
No ano de 2020, ano de início da pandemia da COVID-19, o programa de “recrutamento e seleção” e as atividades de “treinamento, desenvolvimento e educação” foram colocadas a cargo da UniBB. Ao analisarmos o relatório anual de 2024, o mais recente publicado no portal, observa-se que dentre as melhorias mapeadas pelo Banco está posto que o portal UniBB congrega diversas atividades educacionais voltadas ao desenvolvimento do funcionário e alinhadas às estratégias da empresa. De acordo com o mesmo relatório, quase 100% do quadro funcional concluiu ao menos um curso no último ano.
Faça de mim um copo (!/?)
Ao termos acesso à transcrição de uma palestra “O profissional antifrágil”, ministrada por Rodrigo Giaffredo, mais um daqueles palestrantes/coach ligados a empresas de tecnologia, adentramos ao conteúdo promovido pelo curso de mesmo nome da UniBB. Em sua explanação, o palestrante descreve o contexto atual como caótico, repleto de fragilidade, ansiedade, não-linearidade e incompreensibilidade, adjetivos lançados como artifícios retóricos, sem uso conceitual, pois afinal qual é a materialidade histórica do “caos” atual? O palestrante não se debruça, em nenhum momento, sobre esta questão que a nosso ver é central. Ao criar esse abstrato cenário apocalíptico que recai sobre os trabalhadores e clientes – veja ao final são apenas dois tipos de partes interessadas, os trabalhadores e os clientes – é evocado o medo como o afeto primordial. Nesse ponto o palestrante lança duas capciosas questões norteadoras do curso – (1) como lidar com o mundo sem quebrar no meio? (2) como transformar o caos em oportunidade de crescimento? -, as quais iremos adentrar de maneira pormenorizada.
Para responder à primeira pergunta, o palestrante faz uso da teoria dos copos de Nassim Taleb, trazendo uma – esdrúxula – representação dos sujeitos/trabalhadores enquanto copos. Nomeando os sujeitos em quatro tipos diferentes de copos, que variam conforme a composição, o palestrante realiza uma classificação diagnóstica do que cada sujeito/trabalhador representa. O copo de vidro é o sujeito frágil, aquele que quebra frente a pressão, os sintomas que o expressam são burnout, estresse excessivo, frustração e situações onde se demonstra ser frágil. Ou seja, se adoecer ou demonstrar fraqueza frente às demandas você é um simples copo de vidro, o mais baixo sujeito/trabalhador na cadeia hierárquica do mercado de trabalho e o menos preparado. A fragilidade é toda sua que não soube se preparar. O copo de borracha é o resiliente, o que consegue suportar a pressão mas que se deforma. Por todas as vezes ter que passar por um “novo aprendizado” demora a responder ao que lhe é esperado pelo mercado, por esse esforço pode ficar cansado e se quebrar como o sujeito frágil. Apesar de possuir uma qualidade não performa conforme o demandado. O copo de wurtzita é o sujeito antifrágil, aquele que enxerga – wurtzita é um mineral composto encontrado na natureza – a adversidade como oportunidade de crescimento e transformação para tornar-se ainda mais duro. Por serem fortes e resistentes os antifrágeis tem garantias – leia-se garantias econômicas -. Podemos entender que os antifrágeis em sua composição correm riscos porque são justamente providos de uma natureza econômica que lhes possibilita gostar da pressão, que, afinal, não atua com suas demandas da mesma maneira. É a naturalização dos privilégios dos donos dos meios de produção, entendido na dinâmica dos copos como aquele que é provido de uma composição especial natural. Nesse momento adentra uma saída aos “vidros” e “borrachas” para sua condição.
Paulo Cesar Rodrigues dos Reis Filho
Ana Magnólia Mendes
Brasília, 20 de agosto de 2025.
[1] A tradução literal para o português da palavra stake pode ser: “participação”, “interesse”, “aposta”, “algo em jogo”. A palavra holder pode ser traduzida em algo como: “detentor”, “portador”, “aquele que segura/possui”.