Crítica ao egoísmo institucionalizado

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O cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho não levou a esperada Palma de Ouro do Festival de Cannes, mas voltou da França aclamado pela crítica especializada internacional após a exibição do seu segundo longa da carreira, Aquarius. Em entrevista exclusiva ao Correio, o diretor, que liderou protesto contra o “golpe na democracia brasileira”, fala do conturbado momento político do país. “Aproveitamos, portanto, a oportunidade de estarmos em Cannes, com um filme brasileiro em competição, para lembrar que o que ocorre hoje no Brasil é irregular, antidemocrático e abre brechas para que o sistema político, já doente, piore”, afirmou.

Na entrevista, Kleber Mendonça Filho ressalta sua preocupação diante do afastamento da presidente Dilma Roussefff e diz o que o preocupa no Brasil de hoje. “Retrocesso, no sentido de pensar democraticamente a sociedade, o país; o egoísmo institucionalizado; a política como guerra de poder, enquanto problemas diários da nação ficam em quarto plano”, afirmou.

Você e sua equipe foram  responsáveis talvez pelo mais  eficiente e contundente protesto contra tudo o que vem acontecendo no Brasil. Você acredita que a capacidade de mobilização da classe artística brasileira pode desgastar Michel Temer até que ponto?

Fizemos um gesto, em folhas de papel A4. Foi uma tomada de posição, um pequeno e simbólico ato que expressa o que acreditamos. Nossa democracia é jovem, em formação, ou em reformação, após um período não democrático, nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Nossa democracia também tem problemas, o massacre muito natural e prosaico da população negra e pobre, por exemplo, é um indicador que desmoraliza o país sempre. No entanto, temos uma democracia, e quebrá-la com um impeachment todo forjado a partir de justiças seletivas é preocupante para mim e para muitos brasileiros. Aproveitamos, portanto, a oportunidade de estarmos em Cannes, com um filme brasileiro em competição, para lembrar que o que ocorre hoje no Brasil é irregular, antidemocrático e abre brechas para que o sistema político, já doente, piore. Teremos, ou teríamos eleições diretas em 2018, isso teria sido democrático; e, se fosse o caso, banir a esquerda por anos, para longe do poder, mas nas urnas. Sobre Temer, eu realmente não tive a intenção de desgastá-lo, pois sua posição atual já é bem desgastante. Ele já se colocou numa posição difícil ao assumir um país travado pela oposição, e com sua imagem já muito desgastada internacionalmente (aqui no exterior o golpe é visto com enorme constrangimento), numa crise política em parte gerada por erros de Dilma Rouseff e, principalmente, por uma quantidade impressionante de armadilhas criadas pela oposição que sufocaram seu governo, a sociedade e o povo brasileiro.

Após o protesto em Cannes, alguns setores da imprensa começaram a questionar o fato de você ser funcionário público, ligado ao Ministério da Cultura. O seu salário, inclusive, chegou a ser publicado aqui no Brasil.  Há algum conflito de interesses? Como você analisa esse tipo de reação?

Eu trabalho há 18 anos na Fundação Joaquim Nabuco; entrei em 1998, era FHC, em quem não votei. É um trabalho de enorme visibilidade, pois o cinema é um lugar frequentado por centenas de pessoas por semana, e 60 mil espectadores por ano numa sala de 200 lugares. Eu amo tanto esse trabalho que o salário divulgado (ele sempre esteve disponível na internet) só pode ser a maior prova disso. Felizmente, meus filmes são muito bem-sucedidos em todos os níveis, no Brasil e no exterior, sou palestrante, faço projetos, e programar filmes, formar público, promover debates, estimular jovens realizadores, montar mostras e trazer para o Recife o tipo de cinema que salas comerciais não exibem me mantém sempre feliz e com um senso de dever cumprido.

O que mais o preocupa  no Brasil de hoje?

Retrocesso, no sentido de pensar democraticamente a sociedade, o país; o egoísmo institucionalizado; a política como guerra de poder enquanto problemas diários da nação ficam em quarto plano. No último ano, a quantidade de energia política jogada no lixo em Brasília atingiu níveis inaceitáveis; o governo Dilma asfixiado calculadamente, a crise piorada artificialmente, a mídia aumentando a intriga, a mentira e comportando-se de forma irresponsável com a sociedade. E, hoje, há uma divisão muito feia, baseada em mentiras e turbulências calculadas.

Como você analisa a campanha de boicote a Aquarius que começa a ser articulada após o protesto em Cannes?

Parece-me um caso claro que se repete ao longo da história do cinema de filmes “controvertidos”. Creio que isso gera debate, discussão e, na verdade, mostra a força da cultura numa sociedade. Aquarius é um filme sobre amor, memória… Se muitos o boicotarem, teremos uma representação correta do que o próprio filme é fora das salas de cinema. Para além disso, as pessoas que querem boicotar o filme têm todo o direito de fazê-lo, pois ir ao cinema é uma escolha de cada pessoa, sempre foi. E obviamente, teremos todos os que querem muito ver o filme.  

Qual é a importância efetiva do cinema no atual contexto político brasileiro?

Eu nunca subestimei a força do cinema; inclusive, historicamente, há inúmeros casos onde essa força se manifestou. Não se trata de mudar o mundo, mas de fazê-lo tremer um pouco. O cinema é forte por trazer imagens e som, e um bom filme apresenta sempre um retrato artístico da realidade que irá (ou não) encontrar força em cada indivíduo, cada cidadão. O cinema faz parte da cultura, que é uma arma de construção em massa. A cultura constrói, agrega e oferece ideias para entendermos quem somos e como funcionamos.

Por que sempre que o Brasil engata a marcha para um salto econômico e sociocultural há um retrocesso?

Creio que são jogos cíclicos de poder num país onde a falta de educação e formação chega aos mais altos escalões do poder via classe política que não pensa o Brasil com inteligência. Acrescente a isso uma nuvem constante e negra de corrupção na sociedade como um todo, da parada na blitz da Lei Seca a propinas milionárias em obras públicas, que não apenas aniquila ações práticas como também neutraliza o otimismo de muita gente honesta.

Como devem ficar o cinema brasileiro e as políticas públicas de audiovisual com todo este conturbado processo político?

Eu realmente não sei o que deverá acontecer. 

Fonte: Correio Braziliense