
Rio de Janeiro — É difícil encontrar alguém no mercado que faça elogios à atual diretoria do Banco Central (BC). A voz dissonante é do ex-diretor da instituição Sérgio Werlang. Para ele, havia embasamento técnico para a decisão de baixar juros a partir de 2011. Ele mesmo, se tivesse na diretoria, na época, defenderia uma redução.
Ele ressalta, no entanto, que não estava no radar do BC e de quase ninguém a intensificação da mudança demográfica que o país atravessa, com forte queda no número de trabalhadores.
Como um dos criadores das metas de inflação, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, Werlang não concorda com quem diz que o sistema está ameaçado e com a credibilidade comprometida. Na opinião dele, “a beleza do sistema” está em conviver com maneiras diferentes de conduzir a política monetária.
Atualmente, o economista é professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro. Atua também como consultor na cidade e em São Paulo, onde passa metade da semana. Em seu escritório pessoal, em frente à Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, concedeu a entrevista a seguir.
Entrevista / Sérgio werlang
O sistema de metas de inflação que o senhor ajudou a criar está comprometido?
Não. Ele tem flexibilidade inclusive para que a meta não seja cumprida quando acontece algo fora do comum. Certamente, a situação que a gente vive hoje não é comum. O país está com um aumento enorme do gasto público, que impulsiona a demanda. Não se consegue frear isso, porque o Executivo tem de submeter as medidas ao Legislativo e, no momento, as condições para aprovação não são favoráveis. Tivemos também um realinhamento do câmbio e de várias tarifas que precisavam ser reajustadas, porque foram seguradas durante muito tempo.
Em que outros momentos o país passou por isso?
Na mudança do governo Fernando Henrique para o governo Lula também houve impacto grande na inflação. Mas as condições para o ajuste foram melhores em 2003 porque havia mais entrosamento entre o Executivo e o Legislativo, maior determinação de fazer o que precisa ser feito. O sistema de metas tem de conviver com essas divergências, não tem jeito. É assim em todo lugar no mundo. Claro que aqui, como a macroeconomia oscila mais, o teto da meta foi rompido com maior frequência, mas não é nada que comprometa o sistema.
A inflação já está longe do centro da meta faz tempo. Estourou o teto no ano passado e deve estourar neste ano. Isso não compromete a credibilidade do sistema?
Não há dúvida de que a eficácia é menor. As expectativas inflacionárias estão muito menos ancoradas do que estiveram no passado. Mas isso não quer dizer que o sistema deixe de funcionar. Neste ano, o Banco Central (BC) tem de lidar com esse impulso de demanda do governo, que, em vez de ajudar a conter a inflação, a está estimulando.
Se fosse independente, o BC teria de levar os juros a um patamar muito alto para cumprir o mandato de conter essa demanda?
Não. Hoje o BC está basicamente enxugando gelo. Para atingir o juro de equilíbrio, teria de ir a um nível muito elevado, uns quatro pontos percentuais acima do atual. E não faria tanta diferença.
Qual seria a consequência de elevar os juros em quatro pontos agora?
Estaríamos submetendo a economia a um grande desarranjo. O juro real elevado é ruim para todo mundo. É errado resolver um problema de natureza fiscal com um instrumento monetário. O BC tem de levar isso em consideração.
O senhor defende a independência do BC?
Sim. Isso quer dizer apenas o presidente e os diretores da instituição terem mandatos maiores ou iguais ao presidente da República, que é quem os nomeia. Impediria o controle político na recondução. Se o presidente da República for reeleito, ele poderá exercer esse controle. Faz parte. Os mandatos no BC deveriam ser de quatro anos, não mais.
Há chances de isso ser aprovado?
O país tem várias instituições que funcionam bem. O BC e o Copom funcionam razoavelmente bem há algum tempo. A composição da diretoria se mantém estável, os quadros técnicos são de muita qualidade. O sistema financeiro brasileiro é bastante robusto. A despeito das oscilações, tem tomado decisões com bastante autonomia. Mas é óbvio que fica alguma dúvida, porque o mandato não é independente da Presidência da República.
Se o senhor estivesse sentado no Copom neste ano, teria votado pela estabilidade da Selic, pela queda ou pelo aumento dos juros?
Eu teria votado pela estabilidade. Subir um ponto percentual seria um voto bastante razoável também. Modelos macroeconômicos têm erro muito maior de previsão do que os microeconômicos. Na hora da decisão, a ciência ajuda. Mas a previsão sobre o que o BC fará é muito importante também para que a expectativa de inflação continue bem ancorada. Mas eu jamais votaria por uma alta grande e continuado de juros.
Há espaço para a queda da taxa neste ano?
Não, nenhum. Enquanto não tivermos a inflação caindo de forma consistente por uns seis meses, ou claramente caindo por quatro meses e deixando muito óbvio que continuará se reduzindo, não se pode pensar em cortar.
E se, dadas as suspeitas de falta de independência do BC, houver corte de juros neste ano fora dessas condições?
A inflação vai subir.
Disparada da inflação é um risco?
Não. Quanto a isso, acho que o BC vai ficar atento, não vai permitir. Nesse caso, subiria os juros. E estaria certo.
Risco de calote da dívida pública existe?
Isso sempre se fala em relação ao Brasil. Mas não vamos nos esquecer de que já tivemos situações muito mais desfavoráveis do que a que estamos vivendo, com a dívida rolando quase toda no overnight. Está muito longe de ser esse o quadro. O Brasil conseguiu equacionar a área fiscal e resolveu o problema. Os exercícios de projeção que se veem, de que a dívida bruta vai chegar a 80% do PIB (Produto Interno Bruto), são muito úteis, porque chamam a atenção para a necessidade de agir.
Nosso problema é comum?
Claro que aqui há urgência maior do que nos Estados Unidos, inclusive porque a economia brasileira não tem grau de investimento. Aqui, a piora da qualidade da dívida determina enorme elevação do spread para emprestar para o Brasil e de desvalorização dos ativos brasileiros. Mas eu vejo esses exercícios como excelentes guias de que é preciso resolver as coisas para ontem.
Mas há condições para isso hoje?
É muito difícil. As decisões principais cabem ao Executivo, que tem de estar convencido de que a solução precisa ser nessa direção e com intensidade rápida. Parece-me que a presidente Dilma tem claro na cabeça que é preciso uma mudança em relação à política anterior. Tanto que ela colocou o Joaquim Levy no governo. Nelson Barbosa também busca austeridade fiscal, embora em um ritmo mais lento do que é necessário para estabilizar a relação dívida bruta/PIB. A direção está clara. Não está clara a intensidade. Outra questão é o Legislativo: tem de estar alinhado com o Executivo.
Estamos em uma depressão?
Tanto faz o nome que se queira dar. É uma situação horrível. Não é uma situação com a qual se queira conviver. Os problemas são internos. Basta olhar a média dos países latino-americanos. Vamos piorar muito em termos macroeconômicos. Mas há muita coisa que pode ser resolvida rapidamente se houver alinhamento entre Executivo e Legislativo.
O BC errou ao deixar a inflação se afastar da meta?
Seria melhor ficar próximo. Mas não é algo único do Brasil. Os países emergentes são muito mais voláteis do que os da OCDE. Não é ideal, porque na hora em que o setor privado faz uma projeção, já dá um desconto. Quanto mais essa expectativa diverge da meta, mais caro fica, em termos de PIB, colocar de novo na meta.
Houve erros na política monetária no passado recente?
É difícil dizer. Nós vivemos durante muito tempo no Brasil com um desemprego estrutural, acima do natural da economia. Em outubro de 2010, pelas contas que eu fiz, o Brasil entrou num regime de quase pleno emprego. Mas só passado um certo tempo é que ficou claro, porque a taxa de desemprego caía muito lentamente e os aumentos salariais eram muito grandes. O BC pode ter levado um tempo para compreender. Assim que compreendeu, começou a agir, na minha interpretação, e o juro subiu um pouco. Talvez pudesse ter sido mais ativo. Mas o resto do governo tinha de ter ajudado, contendo gastos.
Havia espaço para a redução da taxa em 2011?
Hoje em dia, eu diria que não. Mas se estivesse no BC, naquela situação, eu votaria por algumas diminuições, porque acharia que havia espaço para baixar o juro sem afetar a inflação. Há uma discussão se deveriam ter parado de baixar os juros mais cedo. Mas o movimento fazia sentido com as informações disponíveis. Quando há desemprego, há uma ligação forte entre a queda na atividade econômica e nos os preços. Hoje em dia se vê que a atividade estava fraca porque não havia gente para trabalhar. E aí a solução não é baixar juros de jeito nenhum.
O que fazer nesse caso?
Ter política de migração. A quantidade total de migrantes no Brasil é de 0,3% da população. Na Espanha, é de 15%. Nos Estados Unidos também. A gente tem que se abrir. O último relatório econômico do Banco Mundial mostra que há países com crescimento forte da população e outros com diminuição. O que se propõe é que esses países abram para a imigração.
As pessoas estão atentas a isso hoje?
Muita gente está. Mas, no momento, o que precisa ser resolvido é a parte fiscal. Sem isso, não adianta mais nada.
Qual sua participação na criação do sistema de metas de inflação?
Conheço o Arminio (Fraga) há muitos anos, fomos colegas em Princeton. Quando foi convidado para presidir o BC, ele me chamou. Disse: você vai ficar na Diretoria de Política Econômica e eu quero que você faça o sistema de metas no Brasil. Quando cheguei ao BC, percebi que havia uma necessidade grande: a formação do Departamento de Pesquisa. Escolhi um excelente chefe para o Departamento de Pesquisa que foi o Tombini. Eu já o conhecia pela carreira acadêmica, tinha feito doutorado em Illinois e fez concurso para o BC depois disso. Conversamos com o FMI, mas basicamente houve muita ajuda do Banco da Inglaterra, do Banco da Suécia e do Banco do Canadá. Em quatro meses, conseguimos fazer um relatório de inflação bilíngue e estabelecemos o sistema de metas. Óbvio, havia alinhamento do governo quanto à necessidade daquilo. Algo importante também foi a divulgação pelo Brasil a fora.
Tombini tem sido muito criticado pela não fidelidade ao sistema de metas de inflação. O que lhe parece?
Eu não compartilho dessas críticas. O BC tem um corpo técnico muito bom. Os diversos presidentes e diretores do BC têm preferências diferentes por inflação. A desta diretoria e da presidência parece ser um risco um pouco maior de ter inflação se o contrário implicar um custo de PIB muito alto. Se a gente fosse olhar para trás, houve o contrário: diretorias que consideravam colocar a inflação em 4,5% ou abaixo da meta era muito importante. Botaram uma prioridade enorme nisso a despeito do potencial efeito negativo no crescimento da economia.
Essa postura é melhor ou pior?
A beleza do sistema de metas é esta: tem de conviver com as duas. Porque o mundo é feito dos dois tipos de pessoas. A instituição é forte porque convive com os dois tipos.
Fonte: Correio Braziliense
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