Premiação celebra o papel da arte na preservação da memória, enquanto as elites econômicas que sustentaram a ditadura moldam a narrativa histórica
A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro pelo filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, é um marco na trajetória do cinema brasileiro e merece ser celebrada. O longa destaca a força e a luta de Eunice Paiva contra o silenciamento imposto pela ditadura militar, após o desaparecimento de seu marido, o deputado Rubens Paiva. É um lembrete poderoso de como a arte pode dar voz às vítimas da história e preservar memórias que jamais devem ser esquecidas.
No entanto, essa celebração da memória histórica levanta uma reflexão necessária: enquanto Walter Salles denuncia o autoritarismo em sua obra, sua própria família, os Moreira Salles, não apenas apoiou, mas também se beneficiou diretamente do regime militar que o filme critica.
Apoio e benefício durante a ditadura
Documentos históricos revelam que Walther Moreira Salles, patriarca da família e fundador do Unibanco, esteve entre os empresários que apoiaram ativamente o golpe de 1964. Além de colaborar com informações estratégicas para a Embaixada dos Estados Unidos, ele desempenhou papel central na articulação que resultou na derrubada do governo democrático de João Goulart.
O Unibanco foi amplamente beneficiado pelas reformas econômicas do regime, que incentivaram a centralização bancária, esmagaram concorrentes menores e garantiram lucros extraordinários para grandes conglomerados financeiros. Entre 1964 e 1980, o banco realizou diversas aquisições e fusões que o consolidaram como um gigante do setor. Esse crescimento foi diretamente facilitado pelas políticas econômicas da ditadura, que incluíram arrocho salarial, repressão sindical e a abertura ao capital estrangeiro.
A contradição histórica
Décadas depois, Walter Salles, herdeiro desse império financeiro, dirigiu um filme que denuncia o autoritarismo e dá voz às vítimas da ditadura. Porém, a relação da família Moreira Salles com narrativas autoritárias não é apenas coisa do passado. Em 2014, o Itaú, que havia se fundido ao Unibanco, distribuiu agendas que chamavam o golpe militar de 1964 de “revolução”, minimizando os crimes e as violações de direitos cometidos pelo regime.
A ação gerou indignação pública, mas também revelou como as elites econômicas que sustentaram o autoritarismo seguem influenciando a narrativa histórica. A centralização de capital que beneficiou a família Moreira Salles e outros banqueiros durante a ditadura não apenas continua a moldar o mercado financeiro brasileiro, mas também demonstra a falta de accountability histórica. Não houve reparação às vítimas, nem um reconhecimento pleno do papel desses grupos no apoio ao regime militar.
A importância da memória e da arte
Ainda Estou Aqui não apenas celebra a força de Eunice Paiva, mas também reforça a importância de revisitar a história com senso crítico e responsabilidade. Como destacou Fernanda Torres em seu discurso de agradecimento, “a arte pode durar pela vida”. E é justamente por isso que ela precisa ser acompanhada de uma visão ampla, que inclua a atuação de quem lucrou com o autoritarismo e continua a moldar a memória nacional em benefício próprio.
Entre a denúncia e a responsabilidade
A conquista de Fernanda Torres e Walter Salles é, sem dúvida, um momento de orgulho para o cinema nacional. Mas também é uma oportunidade para refletirmos sobre o papel das elites econômicas no apoio a regimes autoritários e na construção das narrativas que consumimos. Celebrar filmes que denunciam a ditadura é essencial, mas não podemos ignorar que, enquanto isso, as mesmas elites continuam a influenciar o presente.
Viva a arte brasileira, viva a memória, mas que elas venham acompanhadas de justiça e verdade histórica.
Gabriel Antonoff
Com Seeb-DF