Privatizar banco público agora vai na contramão do mundo, diz ex-presidenta da Caixa

Maria Fernanda Coelho explica como instituições financeiras estatais podem salvar países em situação de crise econômica

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Os servidores de bancos públicos vêm realizando uma série de atos, paralisações e manifestações contra a privatização de partes da Caixa Econômica e as demissões em massa do Banco do Brasil. Além da função social, essas instituições têm uma relação direta com financiamento de órgãos ministeriais e o financiamento de políticas públicas.

A Caixa Econômica Federal, por exemplo, é responsável pela operação de diversos benefícios, programas sociais e trabalhistas, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Seguro Desemprego, o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial.

::Banco do Brasil, Caixa e Petrobras já estão sendo privatizados, alerta Rita Serrano::

Quem explica a relação entre as ações desenvolvidas pelos bancos e essas políticas é Maria Fernanda Coelho, ex-presidente da Caixa Econômica Federal (CEF). Ela presidiu a estatal de 2006 a 2011, foi a primeira mulher a exercer o cargo desde que o banco foi criado, há 160 anos. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ela explica o papel das empresas públicas no enfrentamento à crise econômica e sanitária. Confira:

Em janeiro deste ano, o Banco do Brasil anunciou um amplo conjunto de medidas que vão diminuir sua estrutura organizacional. E um dos argumentos para essa reestruturação é a aposta numa maior digitalização do sistema e otimização da estrutura. Há algo além por trás desse discurso? 

Todo esse projeto, tanto essa decisão em relação ao Banco do Brasil, como as recentes decisões em relação a Caixa e outras instituições estatais, fazem parte de um grande projeto do governo Bolsonaro e (do ministro da Economia) Paulo Guedes, que é a privatização dos bancos públicos.

O argumento da digitalização é um argumento falso. É uma falsa premissa, e é a mesma que está sendo usada na Caixa. Veja que coisa absurda, a Caixa fez um movimento importantíssimo para conseguir que as pessoas tivessem acesso ao auxílio emergencial.

Foi uma resposta extremamente rápida, até porque nós já tínhamos alguns bancos de dados como o Bolsa Família e informações das pessoas que poderiam, de fato, receber esse auxílio, fruto de um amplo trabalho promovido nos governos Lula e Dilma. E vem o argumento de que prescinde dos trabalhadores e das trabalhadoras bancárias para fazer a digitalização. Isso é falso.

Na realidade, você consegue esse tipo de resposta com base em toda essa experiência que os bancários tem. E é por isso que tem esse aplicativo que as pessoas acessam, é fruto exatamente de uma inteligência que está incorporada nos bancos.

Se você privatizar, o que vai acontecer? Você vai ter um banco privado cuja meta é um lucro, e ele vai, na realidade, auferir riquezas em função de todo o trabalho que foi desenvolvido por um banco público e você vai entregar isso de bandeja para o privado, ou seja, na realidade é um grande crime que se comete.


Sem a estrutura operacional já existente na Caixa, o auxílio emergencial teria demorado ainda mais para chegar ao trabalhador   / Marcelo Casal / Agência Brasil

Qual a relevância desses bancos públicos no contexto de crise que a gente vivencia agora no Brasil? 

A gente teve uma experiência bem recente, que foi em 2008, quando teve aquela grande crise em função da quebra do mercado imobiliário nos Estados Unidos, que afetou instituições seculares, como o banco Lehman Brothers e várias outras instituições em todo mundo. Já há vários estudos que comprovam que todos os países onde havia bancos públicos, a capacidade de resposta foi muito mais rápida.  

Então, em relação aos bancos, especificamente, teve na Caixa, por exemplo, no auge da crise lá em 2008, o lançamento do programa Minha Casa, Minha Vida. A meta foi muito ousada, ele foi lançado em março de 2009 e a meta foi, até dezembro de 2010, alcançar um milhão de moradias contratadas.

Isso gera uma resposta muito rápida da economia. O setor da construção civil utiliza insumos nacionais e emprega muita mão de obra, há toda uma cadeia produtiva que fornece insumos, materiais. Então, o programa contribuiu para que o Brasil retomasse de forma célere a atividade econômica e não caísse na mesma situação aflitiva em que vários países caíram. 

Então, imagine. Hoje, o Brasil tem mais de 13 milhões de pessoas desempregadas, fora os alentados, fora os que não mais procuram emprego, porque nem acreditam mais que vão conseguir. É uma coisa realmente triste, muito perversa, porque significa que o governo não está dando as respostas adequadas para que essa população tenha acesso ao trabalho e à renda, à vida digna.

Então, a gente tem esses bancos públicos, Banco do Brasil e Caixa, e na região nordeste tem o Banco do Nordeste também, que podem impulsionar tanto o setor da construção civil, quanto a agricultura familiar, a produção de alimentos saudáveis. 

A gente precisa ter resposta. Tanto a vacina para todos e todas, quanto a gente precisa ter crédito, oferta de crédito adequada para que as pessoas possam produzir alimentos, possam operar nos diversos segmentos da economia, no comércio, na prestação de serviços, na construção civil, para sairmos mais rapidamente da crise.

Os bancos privados não podem exercer um papel semelhante, apoiando o combate à pandemia ou em auxílio à população? 

Veja, a grande diferença do setor público para o setor privado é que o banco privado tem como objetivo maximizar o lucro para os seus acionistas, para o presidente da instituição e para os acionistas que ele tem. Então, na realidade, ele vai buscar a maior rentabilidade nas operações. No banco público, no caso da Caixa, que é 100% pública, ela tem um único acionista, que é o governo federal. Então, todo o resultado do seu trabalho, ele reverte para a população. 

Eu gosto sempre de citar a questão das loterias. Então, uma das metas do governo Bolsonaro, de Guedes e do presidente da Caixa é privatizar as loterias. A gente tem que sempre lembrar que quase 40% de toda arrecadação das loterias é direcionada para segurança pública, para a previdência, para a cultura e os esportes. Ora, na hora que privatizar, todo esse recurso, que antes alimentava, por exemplo, o fundo penitenciário, que permite que tenham melhorias em todo o processo penitenciário ou no esporte, ou na cultura, ou na previdência social, isso vai pro setor privado. 

O lucro que você vai ver dessas instituições [privadas] simplesmente demonstra isso, ou seja, não tem nenhuma preocupação em relação ao público, as pessoas de baixa renda, para que elas sejam isentas de tarifas, para que elas possam ter uma oferta de crédito, com a taxa de juros adequada ou com o subsídio adequado. 

Hoje, o que se vê no mundo, em vários países da Europa, é a retomada da prestação de serviços na esfera pública, porque se sabe que tem uma condição de atender à população de forma muito mais adequada. Tanto que um estudo já demonstra que mais de 800 empresas no mundo voltaram a ser estatais. 


Maria Fernanda: ‘Ele ]Bolsonaro] não tem nenhuma preocupação em melhorar a vida das pessoas, das famílias’ / Valter Campanato/Arquivo Agência Brasil

O ministro da economia, Paulo Guedes, assumiu a pasta se colocando como um grande defensor das privatizações. Quais são as perspectivas para o setor público no país? 

Olha, a perspectiva é de muita luta, porque os trabalhadores se mobilizam e existe um Comitê em defesa das estatais. A gente fez a maior descoberta que houve talvez no século XXI, que foi a descoberta do Pré-Sal, e o governo está praticamente entregando. Veja como é perverso: todo dinheiro do Pré-Sal, ele estava com a sua grande destinação para Educação. Então, tinha todo esse movimento das universidades, da construção dos institutos federais, ou seja, toda perspectiva de que com essa riqueza que o país descobriu, que era uma tecnologia só nossa, seria financiada a Educação. 

Se você vende essas estatais, você prescinde do futuro e da grande oportunidade da gente dar um salto tecnológico, na educação, na saúde, para que as pessoas tenham uma vida digna. Então, o projeto deles é privatizar Correios, Eletrobras, Caixa e Banco do Brasil. Traz lucro imediato, mas no longo prazo é perverso para todas as pessoas.

Como você avalia que a metassíntese proposta pelos movimentos populares e organizações políticas do “Fora Bolsonaro” contribui na luta pela soberania e pela permanência das instituições e bancos públicos do país? 

Eu acho fundamental. Imagina se a gente não tivesse toda essa mobilização dos movimentos populares, trazendo essa esperança. 

Já a palavra de ordem “Fora Bolsonaro”, ela diz o seguinte: não concordamos com o que está aí, não concordamos com a forma como o governo trata, não só durante a pandemia, como trata os trabalhadores com todo esse discurso falso de que, fazendo reforma, a vida vai melhorar. Tudo mentira. É só para iludir as pessoas.

Então, o papel dos movimentos populares é fundamental. Eu acho que a discussão da gente exigir vacina para todos e a gente ter a garantia de que as pessoas continuarão a receber o auxílio emergencial é fundamental. Que os movimentos populares, as organizações, os sindicatos estejam unidos para que a gente possa conquistar não só a vacina, mas uma condição de vida melhor. 

Fonte: Brasil de Fato Pernambuco