Entenda como o microcrédito no Brasil pode ajudar a enfrentar a pobreza

Operações de microcrédito crescem a cada ano no país, mas crise da economia e queda na renda impedem que esse recurso tenha mais benefício social

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Nas últimas edições da Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) tenho tratado do tema do microcrédito no Brasil. Este também será tratado na 22ª Carta, que será lançada nos próximos dias e que estará disponível em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs. Este artigo é uma versão ajustada daquela nota. No mercado financeiro, o segmento das microfinanças é aquele que oferece produtos e serviços voltados aos clientes de baixa renda. Seguros, financiamentos e empréstimos, muitas vezes inacessíveis àqueles com dificuldades para comprovar capacidade de pagamento ou oferecer garantias ao credor.

O microcrédito é um desses produtos, o crédito de pequenos valores e pouca ou nenhuma exigência de garantia. O microcrédito tem destaque por sua contribuição potencial para a superação da pobreza. Enquanto parte das pesquisas registra impactos positivos sobre a geração de renda, condições de saúde, de consumo e criação de empregos. Outra parte não sustenta essa relação. Daí que é preciso qualificar a discussão sobre o microcrédito e identificar os contextos em que favorece a redução da pobreza.

Vale notar, a própria oferta dos produtos e serviços financeiros já amplia o leque de opções e oportunidades para a parcela mais pobre da população. Não obstante, para ir além do acesso é importante desenvolver produtos mais ajustados às características dos consumidores de baixa renda. Parece contribuir: uma infraestrutura adequada, como sistemas de pagamento, serviços digitais, conectividade, e a oferta de qualificação profissional e acompanhamento para o microempreendedor.

No Brasil, em um primeiro momento, predominou o microcrédito oferecido por instituições sem fins lucrativos. O pioneirismo coube ao Programa União Nordestina de Assistência a Pequenas Organizações, entre os anos de 1973 e 1991. O programa oferecia crédito e capacitação a pequenos empreendedores urbanos, em Recife e Salvador. Mais tarde, houve a participação do poder público no fomento a iniciativas como os bancos do povo e outras organizações, além do crescimento do cooperativismo de crédito. A partir de 1998 foram regulamentadas as Sociedades de Crédito ao Microempreendedor, além de qualificadas as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público voltadas para o microcrédito.

Em 2003, a oferta de microcrédito começou a ganhar a feição atual, marcada pela maior presença do governo federal e do Banco Central na regulação da atividade. Desde então, tem-se o direcionamento de parte dos depósitos à vista das instituições financeiras para as operações de microcrédito, bem como de fatia dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Além da instituição do Programa Nacional do Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO).

Em 2020, como reação à crise produzida pela pandemia de Covid-19, o governo federal lançou o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE), instituído pela lei 13.999 de 2020. No âmbito do microcrédito, entre outras medidas, a lei ampliou os limites de faturamento anual que definiam quem pode ser enquadrado como microempreendedor e eliminou a obrigatoriedade do contato presencial para a obtenção do crédito.

Atualmente, de acordo com a Resolução do Banco Central n° 4.854, de 24 de setembro de 2020, têm acesso aos recursos do PNMPO os tomadores com receita bruta anual de até R$ 81 mil, se microempreendedores individuais, ou R$360 mil, se microempresas. Ademais, o somatório dos saldos devedores das operações de microcrédito não deve ser superior a R$ 21 mil na mesma instituição financeira; e R$ 80 mil na soma de todos os saldos devedores do tomador junto ao Sistema Financeiro Nacional (SFN), excluindo as operações de crédito habitacional.

Há o crescimento excepcional da modalidade até o final de 2014, a queda a partir daí é efeito provável da crise econômica do biênio 2015/16. No ano seguinte, a crise foi contida e o limite para a tomada de recursos no PNMPO foi ampliado. A carteira cresceu até alcançar o patamar mais alto da série em dezembro de 2021.

A expectativa para este ano é de manter o crescimento. O microcrédito é oferecido pelos bancos, cooperativas de crédito e por Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Segundo a Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (ABCRED), que reúne OSCIPs que atuam neste segmento, o esperado é um aumento de 20% nas concessões de microcrédito, que no ano passado alcançaram R$ 858 milhões.

Medidas recentes e em discussão para o microcrédito

Dois projetos de lei são de interesse maior para as micro e pequenas empresas. A medida provisória número 1.107, de 2022, que instituiu o Programa de Simplificação do Microcrédito Digital (SIM Digital), e a medida número 1.114, também deste ano, que cria o Fundo Garantidor de Habitação Popular e participação da União em fundos garantidores de risco de crédito para micro, pequenas e médias empresas.

O SIM Digital tem como objetivo incentivar a formalização do trabalho e empreendedorismo, por meio das microempresas individuais; promover a inclusão financeira e dar acesso ao crédito para esses empreendedores, além de criar meios de garantia para a concessão de microcrédito produtivo no âmbito do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO). O SIM Digital conta com R$ 3 bilhões em recursos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) destinados à aquisição de cotas do Fundo Garantidor de Microfinanças.

Por sua vez, a criação de um fundo garantidor para as microfinanças, através da medida provisória 1.114, vai em linha com a tendência internacional de aumento das garantias às operações de crédito. Ademais, propõe a reabertura do Programa Emergencial de Acesso ao Crédito (PEAC). Encerrado em 2020, o PEAC foi uma resposta aos efeitos socioeconômicos da crise sanitária decorrente da pandemia. Através do programa eram oferecidas garantias, de até 80%, para as instituições financeiras concedentes de crédito. Mais de 130 mil operações foram contratadas através do PEAC, representando mais de R$ 90 bilhões.

As microfinanças têm o condão de incluir a população de menor renda e democratizar o acesso aos serviços do mercado financeiro. Depois da retração verificada nos anos entre 2015 e 2017, o microcrédito voltou a crescer, estimulado pelas mudanças na regulação que aumentaram o limite do crédito, direcionaram recursos e facilitaram o processo de tomada do empréstimo.

Momento atual      

Embora ainda tenha espaço a ser ocupado, o microcrédito não pode prescindir ou se tornar independente do conjunto da economia. Vale notar, a renda média habitual dos brasileiros recuou 8% no primeiro trimestre deste ano com relação ao ano anterior. Houve a escalada da inflação e dos juros. E a inadimplência das famílias e empresas já preocupa. A volta do crescimento é fundamental para que o desempenho do microcrédito seja sustentado e positivo. Difícil é vislumbrar quando a economia voltará a crescer.


Lucio Silva é economista do Grupo Euro17, professor de Economia da USCS, pesquisador do Observatório Conjuscs