Direitos individuais x direitos coletivos durante a pandemia

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A liberdade de locomoção é direito protegido pela nossa Constituição, garantindo-se que todo o cidadão tenha o direito de ir e vir. Essa garantia, todavia, não pode se sobrepor a outros direitos fundamentais, a exemplo dos direitos à vida e à segurança, bem como o direito à saúde.

Essa restrição se justifica quando a sociedade enfrenta alguma situação de risco, exatamente o caso atual relacionado à pandemia do coronavírus, de modo que não se pode fazer uso do alegado direito de ir e vir quando algum indivíduo já infectado se nega a ficar em casa para evitar a transmissão do vírus para outras pessoas.

Ou seja, a liberdade da pessoa deve ter restrições quando pode colocar a saúde e a vida das outras pessoas em risco, especialmente quando estamos diante de um vírus de rápida transmissibilidade.

O isolamento, portanto, é de extrema importância não apenas para garantir que a pessoa doente tenha tratamento adequado e seguro, mas também para evitar que acabe por transmitir o vírus para várias outras pessoas.

Nesse sentido, está vigente a Lei nº 13.979/20, prevendo mecanismos para conter o avanço da doença. Entre eles, a quarentena e o isolamento. A lei também estabelece a realização de exames de forma compulsória. Em tese, essa obrigatoriedade vai contra outros direitos constitucionalmente garantidos, a exemplo do direito à intimidade, mas este também não deve ser visto de forma absoluta quando se pode colocar em risco a vida e a saúde de toda uma comunidade.

A situação, infelizmente, não vem sido respeitada por todos. Algumas pessoas com testes positivos não têm observado o isolamento necessário.

Como noticiado pela imprensa[1], exemplo é um advogado no Distrito Federal que, mesmo com a sua esposa internada em estado grave e já apresentando vários sintomas, negou-se a realizar o teste para confirmação da doença e a cumprir a quarentena, o que levou o governo local a ajuizar uma ação com pedido liminar para que o advogado fosse compelido a realizar o teste e a cumprir o isolamento necessário para não difundir o vírus.

Para a juíza responsável pelo caso, haveria, de fato, “um conflito entre o direito coletivo da sociedade à saúde pública, o dever do Estado de proteger a população e o direito à autodeterminação do cidadão, que, em tese, poderia optar por se submeter ou não a um tratamento médico ou por realizar ou não exames”.

Contudo, entendeu-se que “a determinação de submissão a exames compulsórios e o isolamento do requerido sobressai-se necessária porque o problema é de saúde pública, caso em que ao Estado incumbe adotar providências no sentido de preservar não apenas a saúde e integridade do próprio requerido, mas de toda a coletividade que pode ser exposta indevidamente à contaminação por um vírus de transmissibilidade e letalidade notórias”.

Percebe-se, assim, que nenhum direito, ainda que fundamental, é absoluto. Nesse momento, as duas garantias não podem ser usufruídas em sua integralidade ao mesmo tempo.

Outro exemplo divulgado pela mídia é de um empresário que, mesmo tendo testado positivo para Covid-19, ignorou a necessidade de isolamento e viajou para a Bahia com amigos, contaminando algumas pessoas em Trancoso. O governo da Bahia já tomou as medidas necessárias contra os irresponsáveis atos do empresário[2].

Além de irresponsável, o ato configura crime contra a saúde pública ao transgredir determinação do poder público, destinada a impedir a propagação do coronavírus. Nesse sentido, foi editada Portaria pelos Ministérios da Saúde e da Justiça com determinações sobre a obrigatoriedade no cumprimento das medidas estabelecidas na Lei nº 13.979/2020, inclusive com prisão.

Ademais, com a atual pandemia de COVID-19, estamos presenciando diversos atos do poder público que limitam a liberdade de ir e vir de toda a população, a exemplo de fechamento de estabelecimentos comerciais, academias, agências bancárias, cinemas e parques, tudo com o intuito de barrar a propagação do vírus em território nacional.

As medidas são importantes para impedir que o vírus atinja grande número de pessoas em curto período, impossibilitando que o sistema de saúde consiga atender todos os casos graves decorrentes da infecção.

Infelizmente, tais medidas também não vêm sendo respeitadas.

O próprio presidente Jair Bolsonaro tem ignorado as recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde. Primeiro, participou e incentivou manifestações, mesmo com suspeita de estar contaminado. Depois, fez declarações, em cadeia nacional de rádio e televisão, em sentido totalmente contrário a todas as orientações e ações adotadas ao redor do mundo, defendendo a reabertura de escolas e do comércio, em total desprezo com a saúde e a segurança da população.

Mais recentemente, o Governo Federal lançou a campanha “O Brasil não pode parar”, com custo de R$ 4,8 milhões aos cofres públicos, para pedir que a população interrompa a quarentena. A ação já foi objeto de decisão judicial, determinando-se sua imediata suspensão.

Para a Juíza Federal Laura Bastos Carvalho, da seção judiciária do Rio de Janeiro, “o incentivo para que a população saia às ruas e retome sua rotina, sem que haja um plano de combate à pandemia definido e amplamente divulgado, pode violar os princípios da precaução e da prevenção, podendo, ainda, resultar em proteção deficiente do direito constitucional à saúde, tanto em seu viés individual, como coletivo”.

Assim sendo, o direito de liberdade de locomoção, ainda que importante, não pode ser visto de forma absoluta. A população precisa compreender que o atual momento exige trabalho conjunto, cumprindo regras para proteger não apenas sua própria saúde, mas também das pessoas em situação de risco. As ações que defendem a flexibilização das medidas propostas pela Organização Mundial da Saúde não devem ser aceitas. Não se pode colocar o lucro acima da vida de milhões de pessoas.

Fique em casa!

Brasília, 28 de março de 2020.