ARTIGO: os impactos da MP do ‘pente-fino’ do INSS na saúde do trabalhador

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A Medida Provisória (MP) 871/2019, do “pente-fino dos benefícios do INSS”, foi convertida na Lei 13.486/2019 ou Lei da “Fraudemania”, que se caracteriza pela mania de perseguição do governo Bolsonaro aos segurados do INSS, em uso do legítimo direito ao benefício de auxílio-doença, de auxílio-acidentário e da aposentadoria por invalidez. Enquanto isso, ou por isso mesmo, perdoa, fraudulentamente, as dívidas bilionárias das empresas devedoras do INSS que deveriam compor o orçamento à Seguridade Social dos brasileiros, conforme previsão constitucional.

De maneira geral, Bolsonaro repete a cartilha adotada por Michel Temer (MDB) desde o segundo semestre de 2016. Dez dias antes de sua posse, o atual presidente sinalizou a interlocutores que pretendia perdoar R$ 17 bilhões em dívidas de empresários ruralistas aos cofres públicos. Em paralelo, propôs cortes na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), foi favorável ao congelamento de investimentos sociais por 20 anos, pretende aprovar a reforma da Previdência e diminuir os “gastos” do Estado em todas os setores.

Para orientação à categoria sobre os impactos dessa Lei, segue artigo da advogada Janaína Barcelos, assessora jurídica previdenciária do Sindicato:

DOS PONTOS DE MAIOR IMPACTO DA LEI Nº13.846/2019 (conversão da MP 871/2019) NA SAÚDE DO TRABALHADOR

A famigerada MP 871, com texto definitivo aprovado em 04/06/2019, foi convertida na Lei 13.546, sancionada pelo Presidente da República em 18/06/2019.

A matéria relativa à revisão dos benefícios por incapacidade, instituição do Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica e Bônus de desempenho institucional por análise de benefícios com indícios de irregularidade, e outras matérias na linha da “fraudemania” tem sido tratadas desde 2016 através de Medidas Provisórias, instrumento normativo inadequado para tratar assuntos de tamanha relevância.

Temas de absoluta complexidade, que poderiam estar sendo discutidos na pauta da reforma da previdência, foram incluídos em Lei pela via simplificada da medida provisória, o que, por si só, já representa uma afronta aos direitos sociais.

O presente artigo pretende analisar os impactos específicos da Lei em questão sobre as questões afetas à saúde do trabalhador, contextualizando com as novas dificuldades que irão advir das alterações, agora introduzidas definitivamente no ordenamento jurídico.

1. DO PROGRAMA DE REVISÃO DOS BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE

O primeiro ponto diz respeito ao programa de Revisão dos benefícios por incapacidade. Com o texto convertido em Lei, a revisão dos benefícios sem data para cessar (DCB), ou sem indicação de reabilitação profissional, ocorrerá a cada 6 meses. O programa terá duração até 31 de dezembro de 2020, podendo ser prorrogado até dezembro de 2022.

Na prática, o pente fino dos benefícios por incapacidade vem ocorrendo desde 2016, por ocasião da primeira MP editada sobre o tema.

A revisão inclui os benefícios por incapacidade (auxílios-doença e aposentadoria por invalidez), concedidos administrativamente ou judicialmente.

Para reforçar a “caça às bruxas”, a mesma Lei instituiu, o chamado Bônus de Desempenho Institucional por perícia médica em benefícios por incapacidade (BPMBI). Trata-se de bonificação paga ao perito médico, no valor de R$ 61,72 por cada perícia de revisão realizada.

Veja-se a situação teratológica: o quadro de peritos do INSS não tem sido suficiente para dar vazão às perícias regulares, e agora vem a Lei estabelecendo que o perito será recompensado pela realização de tais perícias ditas extraordinárias. O que se prevê, em verdade, é que em curto prazo tais perícias ocuparão espaço de destaque, em detrimento das perícias regulares, comprometendo o fluxo da concessão e prorrogação dos benefícios.

Em nossa base territorial (Brasília/DF), a maior parte dos benefícios revisados administrativamente foi restabelecida através de processos judiciais, o que revela que as perícias de revisão têm sido realizadas de forma pouco criteriosa, e atendendo a anseios que não são legítimos para a sociedade.

2. DO PROGRAMA DE ANÁLISE DOS BENEFÍCIOS COM INDÍCIOS DE IRREGULARIDADE E O BÔNUS DE DESEMPENHO

Com a mesma tônica da presunção da fraude, e sob argumentos meramente econômicos, a Lei institui também o programa de análise de benefícios com indícios de fraude, estipulando, ainda, de forma análoga ao bônus especial de perícias, o bônus por desempenho ao funcionário que proceder a análise de benefícios com potencial risco de gastos indevidos. Estão na mira, particularmente, as aposentadorias rurais, o chamado BPC – Benefício de prestação continuada, os de acúmulo indevido e com suspeita de óbito do segurado.

Aqui também, vale a indagação acerca da moralidade do bônus que será pago ao funcionário do INSS que proceder a análise de um benefício “com potencial risco de gasto indevido”. Naturalmente que o servidor dará preferência a análise de benefícios mais simples de se detectar a “irregularidade”, e fatalmente atingirá com mais facilidade os beneficiários de renda mais baixa, como os aposentados rurais. O bônus, instituído no valor de R$R$57,50, certamente comprometerá a capacidade regular dos analistas previdenciários.

Sobre o procedimento da revisão do benefício com indício de irregularidade, a Lei prevê a intimação do segurado preferencialmente pela rede bancária ou por meio eletrônico, podendo ocorrer também pela via postal, pessoalmente, ou por edital. O prazo para defesa é de 30 dias para o trabalhador urbano e 60 para o rural. O benefício poderá ser suspenso caso não seja apresentada defesa no prazo ou se a defesa for considerada insuficiente, ou improcedente.

Nossa crítica aqui já começa pela forma de intimação. A rede bancária geralmente se restringe a informar sobre a ocorrência de irregularidade no benefício”, orientando o segurado a procurar o INSS para saber maiores informações. O segurado enfrenta grandes dificuldades de acesso aos processos administrativos/prontuários, que invariavelmente NÃO ESTÃO disponíveis no canal eletrônico, conhecido por “MEU INSS”, tampouco são disponibilizados com facilidade por meio físico, o que acaba dificultando, e até mesmo inviabilizando, a apresentação da defesa do prazo.

3. DO NÃO ASSEGURAMENTO DA MANUTENÇAO DA QUALIDADE DE SEGURADO NO CASO DE RECEBIMENTO DE AUXÍLIO-ACIDENTE

Na redação original do artigo 15 da Lei nº 8213/91, estava prevista a manutenção da qualidade de segurado, sem prazo, a quem estivesse em gozo de qualquer benefício.

A Lei 13.846/2019 excluiu de tal proteção o beneficiário de auxílio-acidente (o indenizatório, B-94), sem acrescentar outra exceção.

Entendemos que tal exclusão não é passível de gerar grande impacto, uma vez que o auxílio-acidente geralmente é pago ao trabalhador que já retornou ao trabalho, e via de regra é pago até o momento da aposentadoria, com suspensão temporária no caso de reabertura de auxílio-doença (previdenciário ou acidentário).

Felizmente continua amparado com a manutenção da qualidade de segurado, sem prazo, o beneficiário de auxílio-doença (previdenciário ou acidentário, sem distinção), não havendo, neste ponto, motivos para maiores alardes.

4. COBRANÇA DE VALORES PAGOS ALÉM DO DEVIDO PELO INSS

Na redação original, a Lei nº8.213/91 previa genericamente em seu artigo 115, o desconto em benefício de “valores pagos além do devido”.

A nova redação ditada pela Lei 13.846/2019 trouxe alcance mais abrangente à cobrança de valores pagos além do devido pelo INSS, passando a incluir os valores pagos decorrentes de ordem judicial, limitando a cobrança em até 30% do valor do benefício recebido.

Nada obstante a aparente sutileza da alteração, na prática, ela pode trazer impactos significativos.

Tomemos como exemplo um benefício deferido judicialmente em sede de antecipação de tutela que, posteriormente, venha a ser revogado em virtude de reforma de decisão em segundo grau de jurisdição. Em uma interpretação literal do novo artigo da Lei, será possível cobrar do segurado o período em que esteve em gozo de benefício deferido por medida de urgência.

De modo semelhante, muitas vezes a autarquia previdenciária demora para suspender um benefício cuja antecipação de tutela fora revogada. A jurisprudência tratava tal situação como “erro da administração” cujo ônus não deveria ser suportado pelo beneficiário de boa-fé, e em tais casos era possível ver declarada a chamada “irrepetibilidade de valores recebidos”.

Além disso, situação recorrente é a de pagamento cumulativo entre auxílio-acidente e novo auxílio-doença. Conforme texto do decreto nº3048/99, o auxílio-acidente deve ser suspenso no caso de reabertura de auxílio-doença, porém raramente o INSS procede a tal suspensão. Em alguns casos, quando o acúmulo é detectado, procede-se à cobrança dos valores. Até agora a jurisprudência vinha sinalizando pela irrepetibilidade dos valores pagos, contudo, diante do novo espírito e nova redação da Lei, o receio é que fatalmente os trabalhadores sejam compelidos a pagar ao INSS valores pagos por erro, e recebidos de boa-fé.

Além da cobrança a partir de descontos limitados a 30% sobre o valor do benefício recebido, a Lei prevê, ainda, a inscrição do segurado na dívida ativa da União, para posterior execução judicial.

Por fim, felizmente foi retirado texto final a parte da MP 871 que permitia a quebra do bem de família para cobrança de créditos constituídos pela PGF em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial recebido indevidamente por dolo, fraude ou coação, inclusive por terceiro que saiba ou deveria saber da origem irregular dos recursos. Permanece inviolável o bem de família.

5. DA MANUTENÇÃO DO ACIDENTE IN ITENERE PARA EFEITOS PREVIDENCIÁRIOS

A Lei nº13.467 de 2017(reforma trabalhista) deixou de considerar como jornada de trabalho o tempo de deslocamento do trabalhador para a residência, e, do trabalho, para casa, gerando efeitos práticos de impossibilidade de responsabilizar o empregador por fatos ocorridos no trajeto.

A legislação previdenciária, por seu turno, sempre equiparou a acidente de trabalho o acidente sofrido no trajeto de casa para o trabalho e vice-versa.

Durante a votação da MP 871, o relatório final se pronunciava pela revogação de tal dispositivo (alínea “d” do inciso IV, do artigo 21, da Lei nº8213/91), ao argumento de compatibilizar a legislação previdenciária à alteração trabalhista.

Contudo, felizmente, em um lapso de lucidez, durante a votação, tal ponto foi rejeitado, permanecendo, para efeitos previdenciários, a equiparação do acidente de trajeto a acidente de trabalho.

6. DO PROCESSO ADMINISTRATIVO ELETRÔNICO

Por fim, a Lei estabelece a implantação e manutenção do processo administrativo eletrônico para requerimento de benefícios e serviços, dispondo, ainda, que o INSS facilitará o atendimento, manutenção e revisão por meios eletrônicos, e implementará procedimentos automatizados de atendimento e prestação de serviços.

Nada obstante tal alteração, o que se observa até agora é que o meio eletrônico atualmente disponibilizado, chamado “Meu INSS” ainda encontra muitas limitações com relação aos serviços necessários aos trabalhadores, sendo certo que ainda se apresenta bastante precária a disponibilidade de documentos, prontuários e processos administrativos, de uma forma geral, por tal canal de atendimento, que até o presente momento não foi eficiente o suficiente para dispensar o atendimento presencial do segurado nas agências.

Ademais, acrescente-se a dificuldade da maior parte da população, não incluídos digitalmente, para acessar tais canais, sendo certo que na realidade brasileira ainda não é o momento de se dispensar o atendimento presencial em serviços da previdência social, sob o risco de se excluir os mais necessitados e humildes da prestação do serviços da previdência social.

Leia mais:

https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/01/21/temer-perdoou-r-474-bi-de-dividas-de-empresas-maior-anistia-em-10-anos.htm

https://www.brasildefato.com.br/2019/01/23/a-exemplo-de-temer-bolsonaro-propoe-ajuste-aos-trabalhadores-e-perdao-a-empresarios/

https://www.brasildefato.com.br/2019/04/12/previdencia-governo-propoe-reforma-mas-quer-perdoar-divida-bilionaria-de-ruralistas

Da Redação