André Nepomuceno
35 anos da morte de Raul, ocorrida em 21 de agosto de 1989. E o que se quer que se diga?
A mim, tenho-o como referência. E a qualidade indiscutível é a de que pode ser ouvido a qualquer tempo. Sua música, voz e figura são daquelas que não precisam que se esteja a fim, mas têm em si o poder de chamar a si.
O que não quer dizer que não possamos escolher a trilha.
No cardápio não faltam opções. Aliás, seria uma paralela com o mítico baú [1], onde Raul guardava muitas anotações, esboços, textos e registros do tipo. Ou seja, uma memória do que julgava interessante ou em gestação para o futuro.
Como qualquer um de nós faz, não necessariamente para fins artísticos, mas como lembrança do cotidiano, de momentos mais ou menos nostálgicos, ao modo de inventário intelectual e álbum de fotografias.
A música de Raul é identificada com o rock brasileiro, ou melhor, identifica-o. Raul é a referência indiscutível. Pode-se, e deve-se, aventar outros artistas, outras bandas, é certo, mas não se tem notícia de alguma que atinja tão universalmente o público.
Sim, sua arte é ouvida como gosto por uma incontável família de tipos, dos especializados aos bregas, dos churrascos aos estúdios, das festas aos shows, dos ouvintes espalhados às legiões reunidas em torno de fãs-clubes e bandas covers.
Há uma variedade sortida de encontros para celebrar o ídolo iconoclasta.
Mas por que Raul assume essa persona tão querida, louvada, homenageada e avocada enquanto paradigma?
É no plano simbólico que residem talvez algumas das explicações, ou pontos explicativos.
Antes de escrever, pensava aqui, se tivesse que definir em termos teóricos, o que faria?
À parte o bloqueio de redigir sobre o ídolo em poucas linhas, como se fosse para um artigo imaginário, o que falaria era a capacidade de fazer as pessoas sonharem. Mas não se apressem, não é naquele sentido romântico de primeira hora…
Seria a característica de traduzir em suas composições um estilo que leva as pessoas à simpatia com os dramas de acesso imediato (sem prejuízo da profundidade contida na aguda inteligência) a seus desejos de protestar e sair do cotidiano.
Ao falar de metamorfoses ambulantes e de ouros de tolo [2], Raul invoca a liberdade, o rasgar das camisas de força pré-estabelecidas pela rotina capitalista – inclusive vigente no país à época (1973) –, a fixação na procura por dinheiro e nas instituições correlatas ao bom funcionamento da ordem: família, igreja, empresa, bens, posições e expectativas que, à maneira em que inseridas em nosso belo (contém ironia) quadro social, exigem a obediência cega, além da caretice.
Estamos falando de rebeldia contra cultural, mas ao mesmo tempo imersa na cultura local e ciente do big business.
Da Bahia, Raul foi ao Rio, para daí desembocar em São Paulo, a metrópole em que escolheu para viver a “madurez” e morrer. Nem ela lhe seria suficiente.
Estamos falando de inquietação e gênio, como ele mesmo registrou, que não cabia em estudos sistematizados, uma vez que para fluir era a música, mais precisamente em forma popular, que alcançava a recepção em massa.
Não que Raul não fosse leitor e escritor. Ele mesmo relatou que tinha ambições filosóficas, de resto perceptíveis na sua trajetória de vida e no trabalho intenso de sintetizá-las em linguagem ao mesmo tempo atrativa e despojada, condensadora de feixes subterrâneos que afloram em nosso dia-a-dia, para o bem e para o mal.
Mais para o mal, se é que me entendem, e Raulzito, herói da cidade de Thor, para escapar da arapuca transou com deus e com o lobisomem e via o planeta como um cachorro que não “guenta” mais as pulgas e se livra delas num sacolejo.
Desse, e de tantos outros conúbios, entre os quais os das superposições entre a vontade de figurar as cenas e tipos urbanos, como os que vemos a integrar a articulada canção SOS [3], com a narrativa em um Rio de Janeiro sob o domingo de missa, jornal, praia e céu azul, enquanto por detrás da triste linda zona sul tal qual vetor tenta tranquilo uma transmutação, são compostos os contrastes que indiciam o mal da mesmice.
Da janela de um quarto de pensão pede-se ao moço do disco voador que não lhe deixe na cidade, pois que tem tanta estrela por aí. E todos sabemos do que fala, entre outras mensagens que nos chegam sem parar: apesar de maravilhosa, a estrutura citadina não contém o tédio e a vontade de uma transcendência (no sentido de exercer as capacidades tolhidas pelo sapato apertado).
O mote que embalou essa contradição entre adaptação e recusa inoculada em mescla própria foi o rock. Uma das tantas mitologias que Raul encarnava derivavam do adolescente em Salvador, imitando Little Richard e se contorcendo a ponto de os passantes confundirem com um ataque de epilepsia.
O fascínio por Elvis pode ser tomado como metonímia do universo que logo descortinou com arrojo, e que levaria vida afora para gerações de fãs e admiradores.
Essa apropriação indicava também a assimilação de gêneros, tais quais, de certo modo, a tropicália, o iê-iê-iê e a bossa nova que, à parte completamente outra “pegada”, por assim dizer, ressaltemos a enorme diferença da atitude: de choque e provocação, cuja textura, se tivéssemos de falar em ideologias, seria a de um anarquismo.
Mas um anarquismo com pé no chão, e na porta: um compromisso contra a repressão, contra a caretice. Paradoxalmente, esse meio de campo já secreta um nervo desencantado ao herói, que nunca conseguiria descansar e envelhecer na glória. Essas tensões multiplicam em outra chave a sua figura de “guia” nas agruras e comédias do show nosso brasileiro de cada dia. Falando a sério, tratava-se do dilaceramento que lhe doía, como sua decadência de saúde provavelmente constitui, ao menos em parte, a desilusão do “maluco beleza” ao constatar não ter onde ir.
Raul era sua obra multívoca, pois além do ritmo e de um autêntico estilo rocker, abordava temas que iam do amor, passando pelos regionalismos, às personagens e produtos da indústria cultural; o ocultismo, a ufologia, a astronomia, etc., bem como aludindo às drogas, às rivalidades e a temas políticos. Ao contrário do que se pensa, ele criticava a ditadura militar e seus “valores”, de modo contundente, embora nem sempre explícito, com metáforas agudas e imaginativas, a fazer efeito poético, ainda que o ouvinte não o soubesse – mas o sente ainda hoje.
Fica dito assim, para não entrar no confronto com a censura à época, e nas inúmeras manifestações públicas, como shows, espetáculos e entrevistas.
Até porque o seu jogo de metáforas e linguagem crua (não quer dizer mal elaborada, pelo contrário) entra desinibido no plano existencial, daí porque, novamente, justifica-se a amplitude do sucesso: há um plano catártico cujo eixo se estende a todo o rol de pessoas que se percebem limitadas pelo ridículo de uma vidinha besta. Amestrada. E quem dentre nós não?
Com sensibilidade ímpar, Raul joga com a perspectiva sedutora, ainda que fugaz, mas ao alcance da mão, de reconhecer e contestar a frustração, de se expandir além da norma, da vitalidade esmaecida, de imaginar e ter coragem de assumir o sonho. Ainda que só ali até a esquina…
Se não dá na realidade, taí o recado do mito, da força, da ironia, do contracanto inteligente à monotonia e à rendição ao absurdo.
A arte de Raul e sua figura mexem com a brasa dos afetos de corpo e alma.
Não se precisa, portanto, obrigatoriamente de reflexões intelectuais: basta vibrar e compartilhar a energia disposta na hora pelo homem que nasceu há dez mil anos atrás, aquele para o qual “entrar para a história é com vocês”.
Porém, numa cativante ironia, vemos 35 anos depois que a sua estrela está longe de se apagar.
Não é por isso que não raro ouvimos e nos identificamos com as “vibes” evocadas pelo bruxo antenadíssimo da aldeia, promotor de empuxo visceral pela veia estética, capaz de atuação política, justamente pelo poder de arrebatar tanto para mapear quanto para incitar (e realizar coerentemente, apesar dos tons trágicos contidos em seu final autodestrutivo) a lúcida insubordinação.
Enfim, Raul é símbolo em que convergem cataratas de memória, coração, história, lutas, dramas, imagens, protestos e ritmo, puro ritmo com inaudita delicadeza e pulsão.
A contextura de todo esse complexo poeta, cantor, músico e ‘showman’, reunindo como poucos as tipologias propulsionadas em sua trajetória, além de divertir em si, faz desejar, desafiar, ironizar, satirizar e deixar por cima o participante do rito, que se sente acolhido por poder, ainda que num lapso, se autorizar a ser quem é ou quem gostaria.
Raul é desses raros pastores, embora jamais aceitasse o título. Digamos então que se trata de uma igreja invisível.
Dessa forma, só temos de registrar um grande salve para Raul, atestando que sua passagem reverbera em ondas cujo manancial permanece potente como poucos.
Assim, o paradoxo, um dos, que sustenta Raulzito e Raul Seixas como um irmão ou um amigo próximo, muito próximo, é o de ter feito música comercial de massa – ou seja, uma mercadoria que vicejou pela sua originalidade, ousadia e sucesso – que encarna para muito além da reprodução a convocação para inverter a ordem do dia e do ser, até mesmo para construir “a sociedade alternativa”.
Tal qual um de seus pilares, ela não será para todos, mas somente para os capazes de ouvir e atender à mensagem: faze o que tu queres, pois é tudo da lei!
Mas não adianta de fora protestar. Tente outra vez!
Toca Raul!
- André Nepomuceno é doutor em Teoria da Literatura pela UnB. Foi dirigente do Sindicato dos Bancários de Brasília. É diretor da Fetec-CN e funcionário aposentado do BRB.
Para quem não conheça: o artigo contém algumas expressões de letras do compositor de modo diluído no texto.
[1] O livro póstumo O baú do Raul (Ed. Globo) contém seleção por Kika Seixas, organização e apresentação dos escritos inéditos do cantor por Tárik de Souza.
[2] Veja-se o antológico LP Krig-ha, bandolo!, com superlativos e perenes sucessos de público.
[3] Contida no também antológico vinil Gita (1974).